Na pequena sala que servia como um escritório privado, Marcus e três figuras se reuniram, sob uma luz fraca de uma única lamparina, o lanista, estava sentado em uma mesa simples, coberta de tabuletas de cera e pergaminhos, enquanto observava os visitantes com uma expressão insondável.
—Então estamos todos de acordo, que há algo errado sobre esse Lucius Mordus —declarou Marcus, enquanto quebrava o silêncio.
Servius, o médico do ludus, assentiu lentamente, ele era um homem maduro de meia-idade, com cabelos grisalhos, com aparência de um erudito devido a anos estudando textos médicos:
—Ele é notável fisicamente, apesar de sua suposta condição em que foi encontrado, seu corpo mostra sinais que ele recebeu algum tipo de treinamento, antes de chegar ao ludus, seu porte físico é desenvolvido especificamente para combate, descarto fato de ele ser um camponês ou um artesão.
—E as cicatrizes? —perguntou Marcus
—Suas cicatrizes, são provavelmente de combates, e possivelmente uma experiência real em batalha, algumas são claramente de lâminas, e há também pequenas cicatrizes circulares, em um padrão que não reconheço, poder ser algum tipo de ritual ou… —Servius deixou a frase incompleta, deixando espaço para especulações.
—Algum tipo de tortura sofrida —completou Atticus, a terceira pessoa presente na reunião, um dos gladiadores veteranos que lutou contra Lucius, sua postura estava relaxada, apesar do seu olhar intenso: —Existem técnicas específicas que são conhecidas por serem de certas organizações.
Marcus ergueu sua sobrancelha:
—Você parece ter conhecimento sobre esses assuntos incomuns Atticus.
Um sorriso enigmático surgiu nos lábios do gladiador.
—Antes de eu me tornar escravo, conheci algumas histórias.
Marcus não o pressionou sobre o assunto, assim como muitos outros no ludus, Atticus tinha um passado obscuro, mas a única coisa que importava era sua utilidade e não suas histórias.
—Continue sua avaliação —o lanista então ordenou antes de retornar ao tópico principal.
—Como já observei durante o nosso confronto, sua técnica não é comum como o treinamento de um militar romano ou do estilo de gladiadores tradicionais, há uma grande chance de ser algum tipo treinamento oriental, o que mais impressiona, é sua abordagem de combate, ele não parece ser o tipo de pessoa que luta com emoção, é como se ele estivesse se adaptando constantemente e calculando seu próximo movimento, ele estuda seus oponentes, identifica padrões e explora seus erros.
—Como um predador —comentou Servius.
—Não, é mais como um assassino treinado, ou espião —corrigiu Atticus.
Um silêncio pesado surgiu com essa declaração, Marcus pensou seriamente enquanto seus dedos tocavam a mesa, antes de se dirigir ao médico:
—É verdadeira sua alegação sobre perda de memória, diga-me em sua opinião profissional?
Servius suspirou claramente com um desconforto sobre a pergunta:
—A mente é o domínio mais difícil de ser compreendido, até mais que o corpo, traumas podem causar perda de memória temporária ou permanente, no entanto, a diferença em sua capacidade física e a suposta perda de memória pessoalmente é…incomum.
—Você suspeita que ele esta fingindo? —concluiu Marcus de forma direta
—Não posso afirmar com total certeza, só acho que essa situação é conveniente demais, faz sentido desconfiar —respondeu Servius seriamente.
Marcus então voltou a sua atenção a Atticus:
—E suas impressões sobre o combate, eu vi você falando algo a ele.
—Foi apenas um elogio, durante nosso confronto, notei como ele modificou sua postura e expressão, para parecer que estava exausto e frustrado, uma tática inteligente e que me deixou com excesso de confiança, onde cometi meu erro sua habilidade não é simples.
—Então temos um problema, um homem misterioso aparece com um passado desconhecido, demostra habilidades incomuns em combate, que contradiz sua condição de perda de memória e utiliza técnicas de manipulação, a verdadeira questão é ele representa uma ameaça real ao ludus ou apenas um caso raro. —Parou, encarando diretamente, todos na sala.
—Quintus vê claramente uma oportunidade lucrativa —disse Servius de maneira cautelosa.
—Varro, esta suspeitando dele, eu o observei monitorando Lucius com um certo interesse incomum, assim como histórico militar de Varro faz sentido ele está preocupado.
Marcus assentiu lentamente:
—Varro disse brevemente sobre suas suspeitas, ele acredita que possa ser um assassino enviado com um propósito relacionado a vsita do Senador Cassius.
—Um ponto que deve ser levado em consideração, a coincidência com a data da visita é no mínimo suspeita —concordou Atticus
—No entanto, se suas intenções fossem hostis ao senador, existem meios mais diretos do que se submeter a escravidão enquanto vive como um gladiador —ponderou Marcus.
—A menos que seu objetivo seja mais complexo do que um simples assassinato, talvez descobrir alguma informação ou criar algum problema durante os jogos —sugeriu Atticus.
Marcus considerou seriamente essa possibilidade, com uma preocupação clara:
—Seja qual for suas intenções, concordo com Varro devemos manter uma vigilância rigorosa, Servius continue com suas observações médicas durante os exames e procure qualquer tipo de suspeita.
O médico assentiu enquanto concordava.
—Atticus você demonstrou uma grande capacidade de avaliar suas habilidades, gostaria que fosse o principal parceiro de treino dele nos próximos dias, observe de forma mais detalhada, pressione ele de diferentes formas, tente provocar alguma reação que revele algum sinal, acusá-lo sem evidências, pode trazer sérios problemas, já que Quintus está com um grande interesse nele agora.
—Como desejar, será interessante. —respondeu Atticus enquanto inclinava levemente sua cabeça.
—Por enquanto, vamos manter esse assunto e preocupações somente entre nós, Quintus está bastante entusiasmado com a possibilidade Lucrativa que Lucius representa, se alertarmos Quintus sem provas concretas, vamos sofrer punições severas. —Finalizou Marcus.
Após os outros saírem, Marcus ficou sozinho em seu escritório, enquanto contemplava mentalmente a situação complexa, em seus vinte anos lidando com gladiadores, ele havia desenvolvido um instinto aguçado para identificar problemas, e Lucius era uma incógnita em sua visão ele pode ser valioso, mas, ao mesmo tempo, uma ameaça imprevisível.
O que perturbava Marcus não era, sua história sobre a perda de memória ou as capacidades demonstradas do homem, mas algo mais profundo, enquanto observava os combates da manhã, ele viu apenas frieza nos olhos de Lucius, que indicava um tipo de perigo, mas o mais importante era a questão de Lucius ser um homem desvinculado a moral.
"Um homem assim, representa uma grande ameaça, mais do que qualquer tipo assassino comum, enquanto a maioria dos assassinos mata por dinheiro, homens que são verdadeiramente amorais matam pelos seus próprios objetivos, sem qualquer consideração no caminho, independente de quem seja ou a forma que é feita o que importa para esse tipo de pessoa é apenas se a finalidade foi obtida."
A lamparina tremeu, com o vento forte, projetando as sombras nas paredes do pequeno escritório de Marcus, enquanto planejava seus planos para monitorar cuidadosamente Lucius.
Na solitaria cela, Caius estava sentado sozinho, sem a companhia de Lucius, o velho gladiador observava a parede oposta com um olhar distante perdido em pensamentos de seu passado.
A pequena ascensão de Lucius, havia despertado lembranças em Caius, que geralmente ficavam suprimidas, sua própria ascensão nas arenas menores da Galia, há décadas atrás, antes de ter suas cicatrizes e perder seu olho, antes de ter sua esperança e sonhos destruídos.
Ele reconheceu algo em Lucius, a disposição de fazer absolutamente qualquer coisa para sobreviver e prosperar:
—Os jovens acham que inventaram a crueldade —murmurou Caius enquanto falava consigo mesmo com um sorriso amargo.
Mas logo seus pensamentos, foram interrompidos, pelo som da porta de sua cela sendo aberta, era cedo demais para o início dos treinamentos, um guarda se aproximou de Caius, enquanto fechava a porta atrás de si, ele não reconheceu a aparência do homem de imediato.
—Caius, o Urso da Gália, ainda vivo depois de todos esses anos, impressionante —disse o guarda em voz baixa.
Havia uma sensação familiar no homem, embora Caius não se lembrasse:
—Os guardas, normalmente, não fazem visitas sociais antes do amanhecer —respondeu Caius com cautela.
O homem então riu, enquanto removia seu elmo para revelar seus cabelos grisalhos cortados em estilo militar:
—Não me reconhece, velho amigo? Bom verdade seja dita, vinte anos mudam um homem.
Caius estreitou seu único olho enquanto estudava o rosto do homem, através das rugas e cicatrizes, surgiu uma imagem antiga do passado em sua mente:
—Septimus…Septminus Aurelius? —perguntou de forma incrédula.
O sorriso do guarda ficou maior:
—O mesmo, embora agora eu use o nome de Flaccus por rasões de segurança.
—Pensei que estivesse morto, após a rebelião em Capua… —Caius disse em choque.
—Quase estive, fui dado como morto entre os corpos após a batalha, um comerciante que estava de passagem me encontrou respirando e me levou para o leste, passei anos nas províncias orientais, antes de retornar à Roma, com minha identidade alterada.
—E agora esta aqui, servindo como um guarda em um ludus nos arredores de roma, que coincidência —comentou Caius com um tom sarcástico em sua voz.
—Não foi coincidência, estou aqui especificamente nesse ludus por causa de seus convidados.
Caius manteve uma expressão neutra, e rapidamente chegou em uma resposta:
—O senador Cassius.
—Exato, você sempre foi observador Caius, mesmo nos dias em que lutávamos lado a lado, você notou o nosso novo amigo incomum, imagino Lucius Mordus.
—Difícil não notar, depois do que ele fez, ele impressionou o Dominus —comentou Caius
—Impressionou ou preocupo?, ou ambos, talvez, um homem com habilidades que contradiz sua suposta condição de perda de memória —questionou Septimus
—O que quer de mim Septimus? Não nos vimos há décadas, e você aparece de forma repentina em minha cela, interessado em meu antigo companheiro de cela.
Septimus sorriu novamente enquanto se aproximava na frente de Caius:
—Sempre indo direto ao ponto, é isso que eu admiro em você, preciso de informações você compartilhou espaço com ele, viu como ele age quando ninguém está presente, notou algo incomum, como um comportamento estranho ou algum comentário, habilidades que são consideradas estranhas para um gladiador.
Caius considerou cuidadosamente sua resposta, independente da situação que estava acontecendo, poderia envolver forças que vão além do ludus, e se ele não tomar cuidado poderia perder a vida:
—Ele é... calculista, fica sempre observando tudo, mesmo no pouco tempo que passamos juntos, eu observei cada palavra dele, senti que suas conversas era um movimento pensado, nada por acaso ou por impulso, percebi isso quando ele estava preso, é isso que achei o mais estranho, ele não reclamou e nem protestou contra sua situação quando foi preso como um escravo.
—Como suspeitávamos, e quanto as alegações que ele disse sobre a perda de memória, o que você acha?
—Ele está mentindo, se sim com que propósito? —concluiu Septimus.
—Você parece ter suas próprias teorias, por que não compartilha comigo antes de ter minha resposta? —comentou Caius
Septimus estudou o velho gladiador por um momento, antes de assentir:
—Justo troca de informações, acredito que Lucius Mordus é um assassino enviado para matar o senador quando ocorrer os jogos, ou coletar informações importantes, de qualquer forma ele representa perigo.
—Enviado por quem? —perguntou Caius.
—É aí que está o problema, existem várias possibilidades, rivais políticos do senador, mas também existem organizações mais perigosas atualmente.
—Conspirações imperiais? —sugeriu Caius, mantendo uma expressão neutra no rosto.
—Provavelmente, você ouviu os rumores sobre o Culto da Lua de sangue?
Caius não conseguiu ocultar a expressão horrorizada:
—Pensei que apenas fossem histórias sobre fanáticos loucos que operam nas fronteiras do império.
—Infelizmente não são apenas historias, nos últimos anos, eles expandiram sua influência fortemente no império, conseguiram altos cargos dentro do jogo politico de Roma, são extremistas implacáveis, conhecidos pelos seus rituais macabros, onde sacrificam crianças jogando-as para serem queimadas vivas em um forno… esses vermes não merecem viver —comentou Septimus com ódio claro em sua voz
—E você suspeita que Lucius, poderia ser um de seus membros? —Caius estava realmente intrigado agora.
—Não descarto a possibilidade, estamos investigando, certos aspectos do seu comportamento é um padrão observado nos membros desse grupo, além de claro as técnicas de combate —confirmou Septimus.
Caius ficou em silêncio, processando essas informações:
—Voce ainda não explicou quem são 'nos' nessa investigação ou o porquê escolheu se revelar a mim, depois de tanto tempo.
Um sorriso frio formou nos lábios de Septimus:
—Algumas lealdades transcendem décadas velho amigo, quanto a 'nós'... trabalhamos apenas para preservar a estabilidade do império contra ameaças internas e externas.
—Frumentarii —concluiu Caius, enquanto observava a reação no rosto de Septimus: —Pensei que fossem também somente rumores.
—É como deve ser, para operarmos de maneira eficiente, preciso de olhos e ouvidos, Caius, preciso de qualquer informação útil sobre Lucius, comportamentos, comentários estranhos, alianças formadas, quero saber tudo.
Caius considerou a proposta:
—E o que eu ganho em troca em nossa colaboração.
—Além de acabar com inimigo do império, sempre prático, muito bem se suas informações se provarem valiosas, eu prometo melhorar sua situação atual até mesmo uma possível liberdade.
A oferta que atingiu Caius, era muito tentadora para um homem que havia abandonado esperanças de liberdade há anos.
—Considerarei —respondeu Caius calmamente.
Após Septimus(Flaccus) se retirar, Caius permaneceu imóvel, sua mente navegava nos acontecimentos inesperados que haviam surgido, se Septimus estivesse certo, Lucius representava algo bem mais valioso do que um simples gladiador com um passado misterioso.
Por outro lado, a repentina aparição do homem que era uma figura do seu passado distante, trazendo histórias de conspirações do império e ofertas, também merecia desconfiança.
Uma coisa era certa, o simples ludus de Quintus Calavius, havia se transformado em um tabuleiro bem mais complexo do que aparentava ser.