Logo após refletir — ou tentar refletir — sobre tudo o que aconteceu na sala do trono, me dou conta de uma coisa: eu não faço a mínima ideia do que rolou depois que o rei interrompeu o clima estranho (e intenso) entre mim e o príncipe. Vamos ser sinceros, minha mente simplesmente apagou. Um branco total. Se alguém me perguntasse o que houve depois, eu juro que responderia “sem memórias disponíveis”.
Mas deixando isso de lado... aqui estou eu, parada bem em frente a uma enorme porta que, segundo me disseram, seria o “meu” quarto. Claro, entre muitas aspas. Porque, para a minha alegria (ironia, tá?), eu vou dividir esse espaço com outra menina. Só peço, do fundo do coração, que ela não seja mimada. Se for... bom, “seja como Deus quiser”, né?
Paciência pra mimado eu não tenho, e se ela começar com frescura, é um tapa na fuça e pronto. Problema resolvido.
Solto o ar com força e abro a porta.
A primeira coisa que vejo? Uma menina lindíssima que, naquele momento, se vira em minha direção em câmera lenta. Clichê? Sim. Mas foi assim que pareceu.
A garota tem a pele mais clara que a minha, olhos de um verde jade que pareciam brilhar, cabelos loiros longos e lisos com uma franja perfeitamente cortada. Ela usava um vestido branco impecável com um laço combinando na cabeça. E o rosto dela... parecia mesmo o de um anjo. Um anjo de verdade, diferente da Raquel — que apesar de também ter cara de anjo, era o próprio capeta disfarçado.
Fiquei ali parada, encarando a menina como se estivesse num comercial de perfume caro, tentando processar tudo enquanto pensava: "E aí? Vai ser minha colega de quarto ou vai me fazer perder a paciência?"
A mesma mantinha um sorriso estampado em sua face. Eu acho que ela vai ter uma personalidade do tipo extremamente extrovertida. Às vezes, fico completamente encantada quando a pessoa é extrovertida, mas caso essa menina for, eu juro por tudo que é mais sagrado que irei me tornar a melhor amiga dela. Porém, se ela for como a Raquel — que eu já tenho que aturar há vários séculos — não irei responder por mim.
Então, de repente, a menina se aproxima de mim com os braços abertos, e com o leve susto que tomo, dou um passo para trás, com ela ficando quase face a face comigo, dando pequenos pulos de alegria.
"Você deve ser minha colega de quarto..." diz ela, com uma imensa felicidade estampada no rosto.
Claro que arregalo meus olhos de surpresa.
O que fazer nessas horas quando se tem alguém com a personalidade oposta da sua, meus caros leitores? (Nenhuma, digo a vocês.)
"Eu sou... acho", acabo sussurrando, já que eu não era o tipo de pessoa sociável.
"Sou Jade Williams, a propósito" — respondeu ela, mais calma, erguendo a mão em minha direção para um aperto.
Ergo minha mão e aperto a dela.
"Celestia Addans."
Logo após ouvir meu nome, Jade me encara com mais intensidade do que o normal. Fico confusa com aquilo, sentindo uma leve estranheza, achando que tinha feito algo errado. Mas, no fim, a maluca simplesmente pula em cima de mim, derrubando nós duas no chão e me abraçando com uma força imensa.
"Eu sabia que ia ouvir falar de você!" — diz ela, soltando uma grande risada enquanto me aperta por baixo dela.
"Você é a garota que fez seu pai cair escada abaixo naquela época!"
Começo a dar leves batidas no braço dela, já sentindo uma grande falta de ar. Aquela menina podia ter uma aparência de verdadeiro anjo, mas pense numa força monstruosa que ela carregava.
Ela percebe minha falta de ar e entra em pânico, saindo de cima de mim e agarrando meu vestido, começando a me sacudir como um saco de batatas.
"Por favor, não morre!" — grita ela desesperada.
Depois de alguns segundos sendo sacudida, acordo e dou um tapa bem dado na cabeça dela, que imediatamente me solta e leva ambas as mãos até a cabeça, fazendo uma expressão dolorida.
— Para que isso? — pergunta ela, fazendo um grande bico e falando com uma voz quase manhosa de dor.
— Porque você estava me sacudindo! — comento de forma irônica, com uma veia saltando na minha testa.
— Mas eu pensei que você tivesse morrido!
Reviro os olhos diante da atitude infantil dela.
— Mas eu não morri — respondo, com vontade de bater nela, enquanto firmo um punho na altura da cabeça.
Ela me olha com medo e se afasta.
— Me desculpa... mas, por favor, não me bata...
Levanto uma das sobrancelhas, cogitando a ideia por um instante, mas balanço a cabeça em negação, mesmo tentada. Me levanto após algum tempo no chão, ainda encarando a maluca à minha frente, até que finalmente me dou conta: eu seria colega de quarto de Jade Williams, filha legítima da Alfa Melody Williams.
A família Williams vive ao sul do território Céu Noturno, a cerca de quatro horas de distância de seu território Estrela Cadente. O lema dessa matilha é Justiça, pois eles acreditam que a justiça sempre deve prevalecer. São conhecidos como os juízes das cortes das matilhas, e a principal representante é a própria mãe de Jade, Melody Williams — que tem a mesma idade que meu pai.
Uma mulher forte, reconhecida como juíza ainda jovem por sua capacidade de distinguir a verdade da mentira, Melody ganhou respeito até do Rei, tornando-se a principal Juíza da Corte dos Lobos. Quando ocorre qualquer tipo de crime, é ela quem realiza o julgamento, independente do caso.
E agora, aqui estou, dividindo o quarto com a filha dela.
Isso poderia arruinar minha vida. Nunca se sabe o que esperar de uma família de juízes...
Então Jade levanta seu olhar em minha direção, dando um leve sorriso gentil.
— Você é uma boa pessoa, Celestia — responde ela, já mudando completamente de atitude comigo.
Ela se levanta e entra no quarto. Logo em seguida, faço o mesmo, entrando atrás dela e olhando tudo ao redor com uma expressão de poucos amigos. Eu estava morrendo de sono — e de vontade de tomar um bom banho, já que estava um verdadeiro trapo.
Dou alguns passos até o banheiro, tomo um banho caprichado e visto um pijama, mesmo ainda sendo cedo. Ao sair do banheiro, percebo que Jade já não estava mais no quarto. Dou de ombros e vou em direção à cama que estava disponível, já que a outra estava tomada pelas coisas dela. Me jogo sobre o colchão e acabo dormindo imediatamente.
Começo a sonhar com meu passado, em algum momento da minha vida que virou tudo de cabeça para baixo logo após a morte da minha mãe. Em uma dessas lembranças, Raquel me encarava de um jeito sobrenatural, seus olhos completamente opacos e com uma faca em mãos.
Tá, vocês achariam, queridos leitores, que eu iria ficar de braços cruzados? Nada disso. Como eu disse no primeiro ou no segundo capítulo, eu sou a verdadeira peste que pode transformar a vida de alguns em um verdadeiro inferno. Então, ainda criança, eu dei uma voadora em Raquel — pra mesma largar de ser besta. Também deu um belo de um trabalho para retirar a faca da mão dela, já que mesma me ameaçou de morte.
Até hoje o idiota do meu pai não sabe, mas se ele soubesse que a chefe das empregadas tentou matar a única filha dele, a mesma teria sido julgada pela família Willians — e seu decreto seria o enforcamento.
Mas como eu nunca contei, e sabendo que ele jamais acreditaria em mim, resolvi ficar calada.
E não foi a primeira vez que Raquel tentou me matar. Teve outro momento. O primeiro foi por envenenamento durante um jantar agradável… ou quase agradável… que eu estava tendo com o idiota do meu pai. Senti o cheiro de veneno na comida e soube logo de cara quem tinha colocado aquilo.
Então, na cara e na coragem, peguei a tal comida — que era a clássica sopa de veneno, bem como nos mangás — e joguei na cara da Raquel. A demônia ficou surpresa com a minha atitude na época. Mas como a sopa estava meio morna, não chegou a queimar aquela cara bonita dela.
Claro que eu queria contar mais do sonho, se não tivesse um caralho de peso sobre o meu corpo. Abro meus olhos e vejo Jade sobre mim, me encarando de perto com aqueles imensos olhos verdes dela.
— Posso saber o que você está fazendo? — pergunto, encarando Jade.
— Eu vi que você estava dormindo e fazendo uma expressão bem feia, como se estivesse contando uma história para alguém — ela inclina a cabeça para o lado, muito curiosa.
Então me levanto da cama, fazendo a mesma cair de cabeça no chão, resmungando de dor.
— Pra que isso?! — reclama ela.
Olho de canto, vendo que ela estava dramatizando, e simplesmente ignoro, entrando no banheiro no fim das contas.