Começo meu terceiro dia logo pela manhã soltando um longo bocejo, completamente desanimada — e com um motivo justo. Estou sentada num banco de igreja, com a minha bela bunda implorando por socorro, já que madeira dura definitivamente não foi feita para longas cerimônias. Mas tirando esse pequeno detalhe, aqui estou eu: dentro de uma igreja, sendo obrigada a rezar.
Hoje é um dia especial. O território — ou melhor, o reino — Noite Estrelada está comemorando seus 10 mil anos de existência desde que o primeiro rei-lobo, Trident Lukaine, fundou estas terras. Foi nesse mesmo dia, segundo as histórias, que as duas deusas gêmeas — a deusa da luz, Amare, e a deusa da escuridão, Maraju — abençoaram o rei com terras férteis.
Dizem que, antes disso, essa região era estéril, amaldiçoada muito antes da chegada de Trident. Mas vou deixar essa história para outro dia — por enquanto, acho que já é o suficiente de contexto sobre como nosso reino nasceu.
Claro, também existem aquelas histórias que foram... convenientemente apagadas da existência. Apesar da enorme Biblioteca Imperial, há rumores de que a verdadeira história — aquela que ninguém quer que saibamos — está escondida em algum lugar secreto dentro dela. Eu, que sou apaixonada por livros no meu tempo livre, ainda não tive a chance de explorar essa suposta seção proibida... até porque nem sei se ela realmente existe. Mas enfim, são só detalhes... ou não.
O tempo passa e eu continuo ali, sentada, tentando fingir alguma reverência enquanto o padre faz sua longa oração, abençoando o território, o rei e sua rainha — que estão sentados alguns passos à minha frente. E, claro, ao lado deles, está o filho lindíssimo do casal, que parece tão sério e imponente quanto o próprio pai.
Como diz o ditado: tal pai, tal filho.
Dou um longo suspiro, incomodada com uma simples ideia: o príncipe estar interessado em outras duas garotas.
Mesmo eu ainda não gostando dele de verdade… ou pelo menos é o que eu acho, por algum motivo essa ideia me deixava meio triste. Talvez fosse só meu ego falando mais alto. Ou talvez fosse por causa daquela cena ridícula no salão, logo no meu primeiro dia no castelo — aquela em que eu fui completamente arrebatada pelo príncipe Cameron. Foi a única vez que tive algum tipo de interação próxima com ele.
Não sei exatamente o que aconteceu naquele dia… Só sei que, depois disso, um monte de garotas decidiu que eu era inimiga mortal delas — sendo que eu literalmente não fiz nada. Nada além de existir, respirar e talvez estar no lugar errado, na hora errada.
Às vezes, só de pensar nisso, eu já acho tudo completamente ridículo.
Eu estava na minha, quieta.
E até agora, nada de especial aconteceu com essas "inimigas declaradas". Nenhuma delas veio me afrontar ou algo do tipo... ainda. E, sinceramente, espero que continue assim, claro tirando aquelas três de ontem.
Já que sempre sinto que estou sendo observada com certa frequência por Jade — que, por sinal, vive aparecendo onde não deveria estar — começo a desconfiar que ela é mais uma sombra do que gente. Sempre fingindo ser algo que claramente não é.
Desde aquele dia no jardim, algo nela não me desceu bem. E agora, para piorar, Jade quase não passa mais tempo no nosso quarto. Vive dando a desculpa esfarrapada de que vai para a biblioteca… o que até poderia colar, se ela não estivesse sempre com o mesmo livro nas mãos. Sempre ele. Sempre apertado contra o peito como se alguém estivesse prestes a roubá-lo.
Ergo meu olhar, já bastente cansado, olhando fixamente para o grande retrato das duas deusas — Amare e Maraju — as tais em que todo mundo jura de pés juntos que acredita. Eu, sinceramente? Não sei se acredito em algo que nunca vi.
Mas… também não posso dizer que sou cética. Acredito que existe algo além da existência, sim.
Aliás, acho que tá na hora de revelar algo que ninguém sabe: eu sou uma reencarnada. Pois é. Na minha vida passada, morri de forma natural depois dos 100 anos. Lembro muito pouco daquela vida, só flashes — como trabalhar como operadora de caixa, sair cedo, voltar tarde, respirar e existir sem fazer absolutamente nada de importante para a história da humanidade.
Às vezes, sinto que nasci no planeta errado.
Minha personalidade atual não tem nada a ver com a daquela época. Lá, eu era mais quieta, reservada, apagada. Já nessa vida? Sou o oposto. Livre. Intensa. Impulsiva. Até meio repulsiva, se você perguntar pra algumas pessoas.
Mas é assim que eu vivo agora. E sinceramente? Eu prefiro essa versão de mim mesma.
Mordo os lábios, como sempre faço quando estou entediada, até que — finalmente! — o padre encerra seu discurso interminável de quase uma hora. Para finalizar a oração, ele pede que todos se ajoelhem e rezem pelas duas deusas. Como boa cidadã que finge seguir regras, também me ajoelho.
Ou, pelo menos, tento.
Porque, claro, eu não poderia simplesmente ajoelhar como uma pessoa normal. Não, eu tinha que dar um corpo mole justo nesse momento e cair de cara no banco à minha frente, batendo o queixo bem na quina de madeira maciça. A dor foi instantânea.
E, como se já não fosse humilhação o suficiente, soltei um belo resmungo — alto o bastante pra ecoar no absoluto silêncio mortal da igreja. Todos os olhares antes focados no padre agora estavam em mim.
Eu. A garota desastrada, ajoelhada no chão, com o queixo ardendo e o ego quebrado.
Confusa e com vergonha, abaixo ainda mais a cabeça, tentando desaparecer — o que, claro, nunca funciona. É como se o universo ficasse entediado às vezes e resolvesse brincar de “vamos ver o quanto conseguimos ferrar com a Celestia hoje”.
E é aí que ouço uma risada. Uma daquelas risadas gostosas de ouvir, que fazem seu peito vibrar sem motivo.
Levanto o olhar, já esperando o pior — e não erro. É ele. O príncipe. Cameron.
Ele está rindo. De mim.
Me olha de canto com aquele sorriso quase imperceptível nos lábios, como se estivesse se divertindo com meu pequeno desastre pessoal.
A mãe dele, porém, não achou graça nenhuma e dá uma cotovelada bem discreta nele, obrigando o bonitão a se recompor e olhar novamente para frente.
E é então que, como cereja no bolo do meu vexame, o rei — aquele rei — me observa e solta aquele sorriso. Um sorriso sinistro, que faz até os pelos que ainda não nasceram em mim se arrepiarem.
Bem, eu até poderia me levantar dali e sair correndo.
Mas... não seria uma boa ideia. Ainda mais na frente das altezas.
Então, por mais que meu queixo doesse, meu orgulho estivesse ferido e minha alma estivesse implorando para desaparecer, tudo o que pude fazer foi continuar ajoelhada, quietinha, esperando aquela tortura acabar.
Essa igreja era uma prisão. Uma prisão decorada, cheia de vitrais bonitos, mas ainda assim... uma prisão.
Minutos se arrastam — cada segundo parecendo uma eternidade — até que, finalmente, o padre dá a última bênção. O rei e a rainha se levantam primeiro, seguidos pelo príncipe, e os três caminham com toda aquela pompa de realeza até saírem pela porta principal.
Depois disso, as outras meninas começam a sair também, uma a uma, como formiguinhas obedientes.
Eu? Fui uma das últimas.
Caminhei até a saída com a cabeça baixa, o rosto pegando fogo de vergonha, me sentindo um desastre ambulante.
Eu nunca sei qual vai ser a próxima cagada que vou fazer. E é isso que me apavora.
Então, como sempre, resolvo apenas seguir com a minha vida inútil e sem sentido.
Vou direto para a biblioteca. Pela primeira vez, aliás.
Abro a enorme porta de madeira maciça, que range suavemente, e sou imediatamente envolvida por aquele cheiro de livro velho — meu cheiro favorito, diga-se de passagem.
Mesmo com a maioria dos livros parecendo ter uns mil anos, o lugar estava impecavelmente limpo e organizado. As prateleiras eram altíssimas, os corredores largos e silenciosos, como se qualquer barulho pudesse acordar os próprios fantasmas das palavras escritas.
Mas havia um único detalhe curioso.
A biblioteca estava completamente vazia.
Quer dizer, tirando a bibliotecária.
Ela estava sentada atrás de um balcão enorme, lendo com uma elegância que até dava raiva.
Sério. Ela parecia saída de algum livro antigo de romance gótico: postura impecável, cabelo preso, expressão calma e superior. E claro, segurava uma xícara fumegante que exalava um cheirinho de camomila.
Um chá... exatamente como os personagens misteriosos tomam antes de revelar um grande segredo.
Fiquei ali parada por um momento, só observando aquela cena meio surreal. A biblioteca era tão grande e ela estava tão sozinha que, por um instante, parecia que ela era uma guardiã do tempo.
Será que ela sabia de alguma coisa? Será que era ali que as histórias proibidas estavam escondidas?
Ou talvez… fosse só uma velha viciada em livros e chá mesmo.