O sol da manhã mal havia clareado o pátio traseiro da residência quando o som seco de golpes contra um poste de madeira já ecoava no ar.
Thwack! Thwack! Thwack!
Yue Yang suava profusamente, os músculos dos braços queimando de fadiga. Na sua mão, uma espada de madeira toscamente talada – sua única companheira nas últimas duas horas. Ele não era um mestre de artes marciais, muito menos um espadachim. Tudo que sabia vinha de filmes e games, mas o conhecimento instintivo do Qi da Espada Invisível que agora habitava sua mente guiava seus movimentos. Eram golpes básicos, cortes horizontais e verticais, mas cada um era executado com uma precisão surpreendente e uma força que fazia a madeira estalar.
Antes do treino físico, ele havia passado a madrugada meditando. Não a meditação tranquila de um monge, mas uma concentração feroz, tentando visualizar e sentir o fluxo daquele poder estranho e cortante dentro dele. Cada fibra do seu corpo parecia mais alerta, cada sentido, mais aguçado.
Ele não sabia ao certo como treinar, mas sabia que precisava se fortalecer. Rápido.
A empregada que veio chamá-lo para o almoço parou na soleira da porta, a boca levemente aberta. Ela estava acostumada a encontrar o "Mestre Yue" ainda na cama ou vagueando sem rumo, não... isso. Ele estava com o torso descoberto, o suor pintando linhas sobre uma musculatura que, ela podia jurar, não estava tão definida na semana passada. Seus movimentos eram ágeis e determinados, totalmente diferentes da postura desleixada de antes.
Ela observou, silenciosa e surpresa, por um longo minuto antes de conseguir articular as palavras.
"Mestre Yue Yang", ela chamou, sua voz um tanto mais alta do que o normal, tentando se fazer ouvir sobre o som dos golpes. "A patroa chamou para o almoço."
Yue Yang parou no meio de um golpe, ofegante. O mundo ao seu redor pareceu voltar ao normal. Ele baixou a espada de madeira e pegou uma toalha, enxugando o rosto e o peito.
"Obrigado. Já vou", ele disse, sua voz um pouco rouca pelo esforço, mas carregando uma confiança que a empregada nunca tinha ouvido antes.
Ela apenas acenou com a cabeça, ainda um pouco atordoada, e se afastou rapidamente, lançando um último olhar para trás. Algo havia mudado no jovem mestre. Algo profundo.
Yue Yang vestiu uma camisa simples e seguiu para a sala de jantar, seu corpo ainda quente do treino, a mente alerta. Ele entrou no recinto e encontrou a cena: Si Niang, a bela tia, abraçada e consolando uma garota toda vestida de preto. Até a pequena Shuang, normalmente uma pestinha, estava se comportando, sentadinha na cadeira, tentando (e falhando miseravelmente) usar hashis para comer, espalhando arroz pra todo lado.
A garota de preto devia ter uns 14 ou 15 anos. Ela tinha traços parecidos com os de Si Niang, mas mais infantis. Seus olhos estavam vermelhos de chorar, e quando viu Yue Yang entrar, ela rapidamente secou as lágrimas e puxou um véu preto para cobrir o rosto.
Yue Yang entendeu na hora. No Continente do Dragão Crescente, só usava véu preto quem era ladra, assassina... ou viúva. Aquela devia ser Yue Bing, a filha mais velha
Pelo que ele lembrava das fofocas do diário, a vida da garota não tinha sido fácil. Ela era até que um talento – conseguiu um grimório com apenas oito anos e meio! – mas, nesse mundo machista, o máximo que uma garota podia aspirar era ser uma boa esposa para outra família. Pra piorar, ela foi casada por aliança política para um herdeiro de outra grande família... que morreu treinando com suas feras antes mesmo do casamento se consumar.
Resultado: todo mundo a via como uma jinx, uma azarada que matou o marido. Ninguém queria chegar perto.
"Parabéns, primo", Yue Bing sussurrou, quase inaudível, se soltando do abraço da mãe e se levantando para ir embora.
"Fica, Bing-er. Ele é não um estranho. Vamos almoçar juntos, como uma família", Si Niang disse, puxando-a de volta para a cadeira.
Yue Bing hesitou, mas finalmente tirou o véu, revelando um rosto de traços delicados, mas pálido e marcado por uma tristeza precoce. Ela começou a comer em silêncio, grão por grão, como se cada movimento exigisse um esforço enorme.
Yue Yang não conseguia desviar o olhar. Havia algo naquela fragilidade envolta em luto que mexia com ele. Ela era bonita, mas de um jeito que dava vontade de proteger... ou de provocar um pouco, só para ver uma reação diferente daquela melancolia.
Ele se pegou olhando fixamente, estudando cada detalhe do rosto dela, até que Yue Bing, sentindo o peso do seu olhar, ergueu os olhos. Em vez de desviar imediatamente, ela manteve o contato visual por um segundo a mais do que o conveniente, suas pupilas cor de mel dilatando levemente de surpresa.
"O que foi?" ela perguntou, sua voz um fio de som, mas sem a timidez de antes. Havia um fio de curiosidade ali. "Eu... mudei alguma coisa?"
"Tudo", Yue Yang respondeu, sem pensar. Ele se inclinou para frente, apoiando o queixo na mão, um sorriso torto surgindo em seus lábios. "Ou talvez eu que não estava prestando atenção antes. Mas definitivamente não é algo ruim."
Yue Bing corou ligeiramente, um leve rubor subindo por seu pescoço. Seus olhos percorreram o rosto dele rapidamente, então baixaram para seus ombros e braços, visíveis sob a roupa simples que usava. Ela franziu levemente a testa, confusa.
"Primo... você também parece diferente", ela murmurou, quase para si mesma. "Está mais... definido. Seus ombros estão mais largos. Você tem treinado muito suas artes marciais em segredo?" Havia um novo interesse em sua voz, uma centelha de algo além da apatia.
"Alguma coisa eu devo estar fazendo direito, não é?" Ele riu baixo, um som rouco que fez ela olhá-lo de novo. "Ou talvez seja a luz. Ou você que está vendo coisas, Bing-mei." Ele usou o termo carinhoso de irmã mais nova de propósito, para ver se ela reagia.
Ela reagiu. Seus lábios se apertaram num filete quase imperceptível, um misto de irritação e algo mais. "Minha visão é perfeita, obrigada. E não é a luz." Ela o encarou, desta vez com mais intensidade, como se estivesse tentando decifrar um enigma. "Você até parece... mais velho. Mais confiante."
"Desastre e quase-morte fazem isso com um cara", ele brincou, mas seu tom era suave.
Ela não respondeu à brincadeira. Apenas segurou seu olhar por um momento mais longo, séria, antes de finalmente baixar os olhos para o prato. Um silêncio carregado pairou entre eles, cortado apenas pelos barulhos da pequena Shuang comendo.
Foi então que Yue Bing quebrou o silêncio, mudando abruptamente de assunto, como se precisasse se agarrar a algo concreto: "Que tipo de Besta Guardiã você conseguiu?"
A pergunta soou mais como um salva-vidas para a própria confusão dela do que mera curiosidade.
"É do tipo elemental. 'Névoa'", Yue Yang mentiu, já se acostumando com a vida de vigarista.
"Tipo elemental... Não manjo muito dessas. Na escola eu só estudei o tipo lutador, que é o mais comum. Não sei te ensinar nada avançado... Só o básico pra invocar uma Flor Espinhosa Cuspidora, mas é uma fera bem meia-boca. Não vale a pena gastar uma página do seu grimório com isso."
"Tranquilo", Yue Yang encolheu os ombros. Na real, ele tava pouco se lixando para quantas páginas usava. Ele tinha a [Sombra Fantasma] roubadíssima e a [Espada Invisível] na manga. Uma plantinha cuspideira era o de menos. Mas era uma chance de aprender o básico e fazer a tia feliz. "Pode me ensinar."
Yue Bing apenas acenou com a cabeça, calada, e voltou a comer.
Foi quando a pestinha, Shuang, resolveu entrar em ação. Tentando pegar um pedaço de peixe defumado no centro da mesa, ela se equilibrou precariamente na cadeira, esticando os hashis.
"Shuang! Modos!" Si Niang repreendeu, batendo de leve em sua mão.
Mas a pirralha, determinada, conseguiu fisgar um belo pedaço de peixe. Vitoriosa, ela virou pra Yue Yang e mostrou a língua, com o peito estufado de orgulho... e se esqueceu completamente de que estava em pé na cadeira.
A cadeira balançou.
"AI!"
Num reflexo que ele nem sabia que tinha, Yue Yang se moveu como um goleiro defendendo um pênalti. Ele largou tudo e mergulhou, agarrando a menina no ar antes que ela se espatifasse no chão, segurando firme sua cabeça.
"Maninho, você é o máximo!" gritou Shuang, que, assim que o susto passou, já estava rindo de novo, agarrando-se nele como um macaco.
Si Niang, branca de susto, se levantou pra dar uma bronca na moleca, que saiu correndo antes que a primeira palavra saísse da boca da mãe.
"Yue Yang! Você se machucou?" Si Niang correu até ele, preocupada.
"Tô de boa", ele disse, se levantando rápido. Ele não estava machucado, só... impressionado. De onde veio esse reflexo? Ele era o rei do sedentarismo! Será que era efeito colateral do tal Qi da Espada Invisível que apareceu no seu sonho? Mal tinha começado a "treinar" aquilo e já tava assim? Que habilidade roubada é essa?
Yue Bing, que tinha ficado parada observando tudo, finalmente saiu do transe. "San-ge... você treina artes marciais? Eu tento treinar às vezes, mas nunca seria tão rápido. Se você conseguir uma Besta de tipo fortalecedor no futuro, junto com sua 'Névoa' de ataque, seu poder de luta vai ser enorme."
Si Niang encheu o prato dele com mais comida, orgulhosa, mas com um misto de preocupação. "Yue Yang, eu sei que você treinou escondido por todos esses anos porque não tinha um grimório. Mas agora você tem! Foca nas habilidades de invocação, que é o que importa. Artes marciais são legais, mas não deixe que isso atrapalhe seu progresso principal, ok?"
Quem treinou escondido foi o outro cara, pensou Yue Yang, mas só acenou com a cabeça. Ele entendeu a lógica: nesse mundo, invocação era curso de natural e mais poderoso. Artes marciais era respeitável, mas não te levava tão longe.
Mas Yue Yang sabia que não importa quão forte for a invocação, uma simples espadada no coração do invocador, a batalha estaria decidida, por isso ele precisava aumentar sua força física e sua resistência.
Depois do almoço, Yue Bing o seguiu até o pátio. Era hora da aula. A irmã viúva, especialista em bestas do tipo lutador, ia tentar ensinar alguma coisa para o seu primo falso, que tinha uma das habilidades mais quebradas que existiam. A ironia era deliciosa, mas não tanto quanto estar junto com ela.