O ar da Noitosfera pesava como um manto de chumbo, impregnado do cheiro acre de enxofre e das cinzas que pairavam sobre a cratera ainda fumegante, onde as últimas labaredas dançavam como espectros rubros. Blade, Rob e Hanson permaneciam de pé no epicentro da destruição que haviam causado, seus corpos marcados pela batalha titânica contra o antigo Senhor dos Demônios. O vento quente do reino infernal levava consigo os últimos vestígios do tirano derrotado - nada mais que um montículo de pó negro que se dissipava lentamente, como se o próprio inferno se recusasse a guardar sua memória.
Rob cuspiu no chão com um gesto brusco, limpando o sangue que escorria de um corte profundo em seu queixo com o antebraço já manchado de fuligem e suor. Seus músculos ainda tremiam da adrenalina da batalha, e seus olhos, ardentes como brasas, percorriam o campo de devastação ao seu redor.
"Então", começou ele, girando o machado de batalha com a familiaridade de quem conhecia cada entalhe da empunhadura, "agora que mandamos aquele filho da puta para o buraco mais fundo do inferno, como é que vai ser? Porque duvido muito que essas hordas demoníacas vão simplesmente baixar a cabeça pra três zero a esquerda aleatórios."
Hanson cruzou os braços com um movimento calculado, seus dedos enluvados tamborilando levemente contra seu próprio braço. Seus olhos - dois poços de escuridão viva - brilhavam com uma inteligência que faria até o mais velho dos demônios pensar duas vezes.
"Eles não têm escolha", respondeu, sua voz tão suave quanto o farfalhar de uma lâmina sendo desembainhada. "Ou aceitam nossa autoridade, ou descobrem por que fomos nós quem derrubou seu antigo senhor. A Noitosfera nunca foi lugar para diplomacia."
Blade esfregou o queixo pensativamente, sentindo a textura áspera da sua pele durante dias de batalha sob seus dedos. Seus olhos negros - frios como o aço de sua espada - percorreram a paisagem devastada ao redor, avaliando cada fissura no solo, cada torre de ossos derrubada.
"Governar tudo sozinho seria como tentar conter um rio de lava com as mãos nuas", ponderou, sua voz grave ecoando estranhamente no silêncio pós batalha. "São legiões incontáveis, territórios vastos como reinos mortais, clãs que guerreiam entre si há milênios... Controlar isso tudo seria impossível até para um deus da guerra."
Rob avançou um passo pesado, fazendo estalar os ossos do pescoço com um movimento brusco. Seu machado girou em um arco perigoso, a luz rubra da Noitosfera refletindo na lâmina manchada de sangue negro.
"Então a gente só precisa esmagar quem reclamar", declarou, seus lábios se retorcendo em um sorriso que mostrava demasiados dentes. "Simples, direto, sem frescura."
Hanson revirou os olhos com um suspiro que carregava o peso de milênios de paciência esgotada.
"Rob", começou, como se explicasse para uma criança particularmente densa, "por mais forte que você seja - e não me entenda mal, você é uma besta em forma humana - nem você seguraria uma rebelião coordenada de todos os clãs da Noitosfera. São milhares, talvez milhões. Você pode matar cem, mil, até dez mil. Mas eventualmente..."
O guerreiro franziu a testa como um touro provocado, seus punhos se cerrando em torno do cabo de seu machado.
"Tá dizendo que eu não daria conta? Eu só preciso de mais tempo e mais sangue!" Respondeu Rob, pensando em todo a evolução que ele teve até chegar ao ponto atual
Blade interveio antes que a discussão escalasse para algo mais físico, erguendo uma mão enluvada em um gesto pacificador que, vindo dele, parecia quase irônico.
"Eu não duvido que você vai chegar ao ponto de impedi-lo, Rob, mas ele está dizendo", intercedeu, sua voz cortando o ar como sua espada cortava carne demoníaca, "que precisamos de algo mais sofisticado do que 'bater em todo mundo que olhar feio'. Se tentarmos governar tudo centralizado, será o caos absoluto. Os demônios nos verão como usurpadores e se unirão contra nós na primeira oportunidade."
Foi então que um som profundo como o rugido de um continente em agonia ecoou acima deles, fazendo vibrar o próprio ar e enviando pequenas pedras pulando no solo rachado. Asas negras como a noite primordial cortaram o céu carmesim, cada batida criando pequenas ondulações no ar denso. Noctheron, o dragão ancestral, desceu como um raio negro, seu corpo massivo bloqueando momentaneamente a luz rubra do céu infernal. Seu pouso fez tremer o solo como um terremoto localizado, rachando ainda mais o já devastado campo de batalha.
"Vocês estão pensando pequeno", rugiu ele, sua voz ecoando não apenas no ar, mas dentro de seus ossos, como se ressoasse diretamente em suas almas.
Os três se viraram como um só, expressões idênticas de surpresa estampadas em seus rostos - Blade com sua calma em público habitual rachada por um segundo, Hanson com uma sobrancelha perigosamente erguida e olhos quase que saltando para fora, e Rob com os olhos arregalados como pratos.
"CARALHO, ELE FALA?!" Rob gritou, recuando instintivamente e quase tropeçando em um crânio demoníaco esmagado.
Hanson ergueu ambas as sobrancelhas agora, seu rosto assumindo uma expressão de "realmente?" tão intensa que poderia derreter aço.
"He, parece que nosso amigo reptiliano decidiu finalmente se dignar a conversar", comentou secamente.
Blade estudou o dragão com um olhar que misturava desconfiança e uma pitada de ofensa.
"E por que diabos", começou, cada palavra saindo como uma faca, "você nunca viu oportunidades para falar antes? Isso teria sido útil em aproximadamente... todas as outras ocasiões."
Noctheron soltou um sopro de fumaça negra pelas narinas, as espirais de fumo formando padrões complexos no ar parado antes de se dissiparem.
"Não precisava antes", respondeu, como se isso explicasse tudo.
Rob abriu a boca para protestar veementemente, mas Hanson - sempre o mais pragmático - foi mais rápido.
"De qualquer forma", continuou, ignorando o olhar assassino que Rob lançava ao dragão, "o que exatamente você quer dizer com 'pensando pequeno'? Porque do meu ponto de vista, governar a Noitosfera inteira é qualquer coisa menos pequeno."
O dragão inclinou sua cabeça majestosa, as escamas negras como vácuo absorvendo a luz ao seu redor e criando uma aura de escuridão palpável. Seus olhos dourados - pupilas verticais como fendas para outro mundo - brilhavam com uma inteligência que transcendia eras.
"A Noitosfera é vasta demais para um único governante", explicou, como um professor diante de alunos particularmente lentos. "Dividam-na."
Blade franziu a testa, trocando um olhar carregado com Rob. Governar juntos já era complicado o suficiente - dividir o reino parecia multiplicar os problemas exponencialmente.
"Dividir como exatamente?", questionou, sua mão descansando instintivamente no cabo de sua espada. "E por que diabos isso seria melhor?"
Noctheron ergueu uma garra poderosa, cada artelho maior que o braço de um homem, e traçou linhas imaginárias no ar carregado de energia demoníaca. Onde suas garras passavam, pequenas faíscas de poder negro ficavam suspensas por um instante antes de se dissiparem.
"Três territórios", declarou, as palavras saindo como um decreto antigo. "Três governantes. Cada um comanda sua região com suas próprias leis, seus próprios exércitos. Os demônios pensarão duas vezes antes de se rebelar, sabendo que desafiar um significa guerra com todos."
Hanson sorriu - uma expressão que faria até um vampiro recuar - imediatamente compreendendo as implicações.
"Equilíbrio de poder", murmurou, seus olhos brilhando com possibilidades. "Se um clã se revoltar contra um de nós, terá que enfrentar a aliança dos três. Brilhante em sua simplicidade."
Rob coçou a cabeça, fazendo voar flocos de cinzas e sangue seco de seus cabelos desgrenhados.
"Então tipo... a gente não manda em tudo, mas também ninguém mexe com a gente? Parece bom, mas e se algum desgraçado achar que pode dar uma de esperto?"
O dragão assentiu lentamente, seu pescoço serpentino arqueando em um movimento que lembrava uma cobra prestes a atacar.
"Exato. E se algum demônio for tolo o suficiente para testar esse sistema..." Seus olhos brilharam com uma luz interna que nada tinha de natural, "...eu mesmo me encarrego de lembrá-los do preço da estupidez."
Blade cruzou os braços, considerando a proposta. Dividir o poder significava menos controle direto, mas tentar governar tudo centralizado seria suicídio político em um lugar onde traição era como respirar.
"E se um de nós decidir trair os outros?", questionou, fixando Noctheron com um olhar que já havia feito guerreiros experientes urinarem nas calças. "O que impede essa aliança de se despedaçar por ambição?"
O dragão rugiu - um som que fez o ar vibrar e pequenas pedras tremerem no solo - e pela primeira vez, mostraram todos os seus dentes, cada um maior que uma espada de cavaleiro.
"Então eu farei do traidor um exemplo que ecoará por milênios", prometeu, e era impossível duvidar de sua sinceridade. "Sua queda será tão espetacular que ninguém ousará seguir seus passos por dez gerações."
Rob deu sua risada habitual, desconsiderando a ameaça do seu amigo reptiliano, mas pelo visto, não o mesmo para Hanson Abadeer, o demônio inconscientemente engoliu saliva seca de sua garganta
"Porra, isso foi a ameaça mais badass que já ouvi. Até eu tô com medo, e eu tô do mesmo lado!"
Hanson, no entanto, parecia genuinamente satisfeito, como se todas as peças de um quebra-cabeça diabólico tivessem finalmente se encaixado.
"Funciona", declarou, assentindo para si mesmo. "Três reinos, três governantes. Ninguém é louco o suficiente para desafiar os três simultaneamente... e mesmo se forem, temos nosso amigo alado aqui para lembrá-los das regras."
Rob, sempre o mais impulsivo, foi o primeiro a se animar com a ideia, sua energia combativa encontrando uma nova saída.
"Então tá combinado!", anunciou, esfregando as mãos como uma criança diante de uma loja de doces. "Eu fico com as Montanhas de Ossos - lá tem as melhores arenas de batalha e os demônios mais fortes pra eu moer no treino. Blade, você fica com o Vale das Sombras, cheio daqueles demônios sorrateiros que você tanto admira. E Hanson, o Deserto de Sal é todo seu - perfeito para um maluco controlador como você."
Hanson olhou para ele com uma expressão tão morta que poderia ter congelado lava.
"Você só escolheu primeiro para garantir o território com mais lutas, não foi?", perguntou, já sabendo a resposta.
Rob exibiu um sorriso cheio de dentes, alguns deles lascados da batalha recente.
"Óbvio, porra! Se eu vou ser um rei demoníaco, que seja onde a diversão tá garantida!"
Blade ainda parecia relutante, seus olhos prateados refletindo a luz de rios de lava distantes, mas sabia que não havia opção melhor.
"Se é assim que tem que ser...", murmurou, antes de fixar Noctheron com um olhar que prometia violência se o plano falhasse. "Mas se algum de nós pisar fora da linha..."
Noctheron interrompeu com um rugido que fez tremer o solo e enviou uma chuva de pequenas pedras caindo de estruturas já danificadas. Quando falou novamente, cada palavra parecia ser esculpida em realidade.
"Não pisarão", garantiu, e era impossível dizer se era uma promessa ou uma maldição. "Porque se o fizerem, eu lhes mostrarei por que fui eu quem propôs esse acordo... e por que fui eu quem sobreviveu a todas as eras desde a criação da Noitosfera."
O silêncio que se seguiu foi mais eloquente que qualquer ameaça, mais pesado que qualquer espada. Até Rob ficou quieto por um momento raro, engolindo seco.
Sob o céu vermelho sangue da Noitosfera - um vermelho que falava de violência antiga e promessas futuras - os três ergueram suas armas em uníssono, declarando o novo pacto. A luz refletiu nas lâminas manchadas de batalha, criando arcos de luz rubra que pareciam cortar o próprio ar. Ao redor, os demônios sobreviventes - antes hesitantes, agora compreendendo a nova realidade - começaram a se ajoelhar. Alguns por medo puro, outros por respeito calculado, mas todos entendendo, em seus corações negros, que o equilíbrio de poder havia mudado para sempre.
E quem ousasse desafiar os novos reis enfrentaria não um, mas três tronos... e um dragão cuja paciência com traidores era tão lendária quanto sua falta dela.
Blade observou Rob e Hanson, seus aliados - e que agora, governaram juntos, mas separados. Unidos, mas divididos. E se um dia essa frágil aliança se rompesse? Se ambições pessoais falassem mais alto que o pragmatismo?
Bem... Noctheron estaria lá para lembrá-los do preço da traição - com juros e correção monetária.
Era a única garantia de que a Noitosfera não mergulharia novamente no caos... pelo menos não até que eles próprios decidissem mergulhá-la.