Ficool

Chapter 16 - Consequências pt.3

O Deserto de Sal era um inferno branco e seco. Areia tão fina que cortava a pele como navalhas. O ar vibrava com energia mágica estática, como se o próprio chão rejeitasse qualquer coisa viva. Hanson caminhava com passos largos, o machado apoiado no ombro, os olhos fixos na tempestade que se formava à frente.

Lá, entre os pilares quebrados de uma cidade morta, um círculo de guerreiros o esperava. Todos descalços, cobertos por tatuagens tribais, peles queimadas de sol e olhos vítreos. Homens e mulheres marcados pela guerra. Os Filhos do Fim.

O mais velho ergueu a voz:

— Você não tem raízes aqui. Nem cicatrizes do sal. Por que acha que pode mandar em nós?

Hanson parou diante dele.

— Porque eu sobrevivi ao Olho Negro. E porque matei Syphax com as mãos nuas.

— Palavras.

Hanson girou o machado, cravou-o no chão.

— Verdades.

Então, ergueu a camisa e mostrou as runas queimadas no peito. Uma cicatriz em espiral, feita com fogo do Orbe, ainda pulsava.

— Eu fui escravo. Fui torturado. Comi carne de companheiro. E mesmo assim, estou aqui.

O velho se aproximou. Tinha um colar feito de línguas mumificadas. Tocou o peito de Hanson com a ponta de uma lança de vidro.

— Prove.

Hanson segurou a lança e a quebrou com uma mão.

— Fale com os mortos. Pergunte pra eles se eu pertenço aqui ou não.

Atrás do círculo, os anciões fizeram um gesto. As areias se moveram. Três bestas do deserto — criaturas feitas de sal vivo, com olhos de âmbar e presas feitas de poeira de ossos — avançaram.

Hanson não recuou.

— Eu não quero seus rituais. Quero sua lealdade. E vou tomar, se não me derem.

O primeiro monstro saltou. Hanson girou o corpo e cortou a cabeça em um golpe seco. O segundo veio por baixo — ele caiu com o joelho sobre seu dorso e esmagou as costelas. O terceiro tentou envolvê-lo com a língua serrilhada, mas Hanson arrancou-a com as mãos nuas.

As areias se acalmaram.

Os guerreiros não aplaudiram. Mas também não atacaram.

O velho tirou o colar e jogou aos pés dele.

— Seja bem-vindo, Filho do Fim.

Hanson pegou o colar e amarrou no braço.

— Agora me mostrem onde ficam os poços de sangue, os mercados de oferenda e as forjas vivas. Eu tenho um exército pra alimentar. E um território pra proteger.

À noite, a tempestade dissipou-se como se o céu tivesse se curvado à presença dele. Os tambores do sal ecoaram pela planície — não por submissão, mas por respeito. Hanson não era amado.

Mas ele era temido.

Sob o luar pálido, ele caminhou por entre as ruínas do antigo império de sal, agora ressurgindo sob sua sombra. Antigos guerreiros o seguiam com silêncio reverente, carregando brasas em urnas de ferro e símbolos tribais feitos de osso e cinza.

Um dos jovens guerreiros — o mais novo, sem cicatrizes — se aproximou.

— Senhor... há algo em você que os velhos reconhecem. Mas os jovens ainda duvidam. Diga-me... o que pretende construir aqui?

Hanson olhou para o horizonte — um mar branco, infinito, quebrado apenas pelas silhuetas das velhas torres carcomidas pelo tempo.

— Um lugar onde força vale mais do que sangue. Onde as cicatrizes importam mais do que os sobrenomes.

O jovem franziu a testa.

— Isso é possível?

Hanson parou de andar. Seu olhar encontrou o do rapaz.

— O possível é um conceito de gente fraca. Eu trabalho com o inevitável.

Nos dias que se seguiram, Hanson foi conduzido aos três centros vitais do povo do sal: o Poço de Sangue, onde os guerreiros purificavam a alma com dor líquida; o Mercado de Oferendas, um lugar onde palavras valiam menos que dentes, e o Fornalha-Viva, uma estrutura ancestral onde os artífices moldavam armas cantando hinos em línguas que nem os deuses lembravam.

Na Fornalha, ele conheceu Gorran, um ferreiro cego com braços feitos de pedra encantada.

— Você quer armar um exército? — perguntou, enquanto mergulhava uma lâmina incandescente numa banheira de saliva de íncubo. — Então terá que pagar o preço. Nada nesse deserto é dado.

— Eu já paguei mais do que devia — respondeu Hanson.

— Não estou falando de dor. Falo de algo mais precioso — disse Gorran, sem virar o rosto. — Confiança.

Hanson riu, seco.

— Eu não vim comprar amigos. Vim selar alianças com aço.

Gorran virou-se, pela primeira vez, encarando-o com olhos brancos e sem pupilas.

— Então me traga o Osso do Devoto. Só ele pode temperar o metal que corta até o véu do mundo.

— E onde fica isso?

— Embaixo do altar das vozes. Protegido por mil línguas que mentem e uma que canta a verdade. Se você sair de lá com os tímpanos... já será um feito.

Hanson pegou o machado e partiu, sem dizer mais nada.

Do outro lado do campo, os anciões do sal se reuniam no Salão da Pedra Rachada. Era uma caverna onde as palavras não ecoavam — diziam que o sal absorvia os segredos.

— Ele é perigoso — disse um deles, mergulhando os dedos num pote de areia sagrada. — Se não o contivermos, teremos um novo tirano.

— Mas se o matarmos, teremos uma guerra civil — disse outro, mordendo o lábio até sangrar. — Os jovens já o chamam de Rei das Areias.

— E os mortos o reconhecem — sussurrou uma velha, com tatuagens dançando sob a pele enrugada. — Vi os espectros curvando-se quando ele passou.

Silêncio.

— Vamos esperar — disse o mais antigo. — Esperar que ele se quebre. Todo homem quebra. A questão é quando.

E então o salão inteiro estremeceu. Um som profundo, como metal cortando o mundo.

— O que foi isso?

— O altar... — sussurrou a velha. — Ele abriu o altar...

Hanson voltou ao cair da noite, coberto de arranhões e com os ouvidos sangrando. Mas em sua mão, ele segurava um fêmur branco, translúcido, com runas girando sozinhas na superfície.

Gorran ergueu a cabeça e sorriu pela primeira vez.

— Então vamos forjar algo que os deuses invejem.

Na última noite antes da consagração de Hanson como líder absoluto do deserto, uma figura se aproximou dele. Era a mesma velha das tatuagens dançantes.

— Você venceu o medo, venceu a dúvida. Mas cuidado com a vitória. Aqui, ela é traiçoeira.

Hanson a encarou, os olhos impassíveis.

— E eu sou traição feita carne. Que tentem me enganar.

Ela assentiu.

— Então governe, Filho do Fim. Mas não esqueça: até o sal mais puro... um dia vira pedra nos rins do mundo.

Ele riu. Um riso rouco, sombrio.

— Eu sou a pedra.

E naquela noite, o deserto enfim sussurrou um novo nome ao vento.

Rei Hanson.

Não por herança. Não por voto.

Mas porque ninguém era louco o bastante para desafiá-lo.

E agora, a outrora terra caótica da noitosfera, se acalmou, talvez por medo dos novos governantes, estes mesmos, que estavam em seus territórios, seja matando, ordenando ou apenas descansando para a próxima tempestade 

A Noitosfera pulsava como um corpo vivo, suas veias se ramificando em desertos, fortalezas, florestas negras e montanhas ocas. Era um império feito de sombras e memórias quebradas, onde o tempo fluía como sangue coagulado. E sob o véu da noite eterna, três nomes ressoavam como tambores de guerra.

Rob.Blade.Hanson.

Ao norte, nas Terras de Cinza, onde as florestas mortas se estendiam até os pés das Montanhas de Ossos, Rob governava com mãos enluvadas de ferro e palavras antigas como as pedras. Ali, a tradição era mais temida do que a morte. Os anciões se reuniam nas Câmaras Funerárias não para votar — mas para se lembrar.

Rob sentava-se no Trono de Mármore Negro, envolto em um manto feito de penas de corvos caídos e couro de necromantes. Ao seu redor, tochas verdes queimavam eternamente, alimentadas por almas penadas em contrato eterno.

Seu povo — os Homens da Névoa — usava máscaras cerimoniais nas ruas, falavam com reverência e aprendiam desde a infância que obediência era a forma mais pura de respeito.

Uma revolta havia começado semanas atrás. Jovens queriam romper o Ciclo dos Lamentos, uma tradição que obrigava os filhos a enterrar os pais vivos quando adoeciam. Rob, sem hesitar, mandou reunir os rebeldes.

— Não sou tirano por escolha — ele dissera diante da multidão acorrentada — sou o reflexo da ordem que vocês não tiveram coragem de manter.

Não os executou. Não precisou. Em vez disso, obrigou-os a estudar com os Grisalhos — monges cegos que recitavam os hinos dos mortos por vinte e sete dias sem pausa.

Ao fim do ritual, os jovens saíram mudos. E nunca mais ergueram a voz.

Rob não reinava por medo.Ele reinava porque era inevitável.

A oeste, nas fortalezas flutuantes de pedra viva, escondidas entre as crateras da Tempestade Estagnada, Blade reunia os poderosos. Magos banidos. Mercenários renegados. Filhos de clãs extintos. Sua capital, chamada Velograv, não era construída no chão — flutuava sobre campos de antigravidade, presa a correntes de relâmpagos que se alimentavam do ar.

Ali, o poder não era herdado. Era tomado.

Blade não se importava com as massas. Deixava os mercadores decidirem o preço do pão, os artesãos criarem suas próprias leis e os plebeus viverem em becos iluminados por cogumelos bioluminescentes. Ele se preocupava apenas com os fortes — os únicos que podiam ameaçá-lo.

Em reuniões secretas nas torres flutuantes, reunia seus generais, duelava com os mais impacientes e assassinava os traidores com um sorriso.

— Um trono não é um pedestal — dizia ele, enquanto limpava o sangue da lâmina — é uma arena. E eu sempre entro armado.

Certa vez, um dos lordes tentou convocar uma votação para redistribuir as regiões comerciais da névoa de sombra. Blade o desafiou para um combate ritual e arrancou-lhe a língua com um gancho de prata antes que ele terminasse a proposta.

— Democracia é só ditadura com maquiagem — comentou, atirando a língua numa fornalha.

Mas mesmo os que o odiavam... o seguiam. Pois sabiam que nas mãos de Blade, o caos era orquestrado. E isso era melhor que a anarquia.

Ao sul, além do Desfiladeiro Gritante e das Planícies de Ossos Cortantes, estava o Império do Sal, onde Hanson governava como um profeta selvagem. Suas terras eram secas, feitas de areia que sangrava quando pisada e ossos que falavam quando queimados.

Lá, o medo era a base da ordem.

Mas não o medo de Hanson. O medo de decepcioná-lo.

Desde que tomara os Filhos do Fim e unira as tribos dos canibais solares, Hanson havia transformado rituais em exércitos e desertos em forjas. Seus guerreiros não dormiam — entravam em trânses induzidos por músicas tocadas em flautas feitas de colunas vertebrais.

Toda semana, um revoltoso era jogado ao Poço das Mentiras, onde as areias falavam a verdade que nem os próprios acusados sabiam. Alguns choravam. Outros riam até o cérebro derreter. Mas ninguém saía o mesmo.

Certa noite, um sacerdote ousou questionar os sacrifícios de crianças no Equinócio das Areias.

Hanson o ouviu. Calmamente.

— Quer misericórdia? — perguntou, segurando o machado. — Então vá até o altar. E me convença.

O sacerdote subiu. Falou por doze minutos.

Hanson olhou para os céus, depois para a multidão... e então cravou o machado no chão.

— Vocês ouviram. Ele vive. Mas se os deuses não aceitarem sua fé, ele apodrecerá em sete dias.

Ao fim da semana, o corpo estava intacto. E a revolta se calou.

E assim a Noitosfera seguia, costurada por medo, respeito e aço. Três líderes, três mundos, três estratégias.

Rob era a torre.Blade era o raio.Hanson, a tempestade rastejante.

E os povos, mesmo divididos, sabiam de uma coisa:

A noite estava segura.Por enquanto.

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