Ficool

Chapter 14 - Consequências pt.2

O Vale das Sombras não via o sol desde que o primeiro pacto foi selado em sangue. Por milênios, a névoa púrpura pendia sobre suas colinas como um véu de luto. Castelos de torres pontiagudas rasgavam o céu como ossos mal enterrados, e as muralhas cobertas de musgo pareciam respirar, sussurrando as maldições dos antigos reis.

No alto de uma das ameias mais altas, onde o vento arranhava como dedos de bruxa, Blade pousou. Suas asas negras se dobraram lentamente, rangendo como armaduras enferrujadas. Ao longe, Noctheron permanecia imóvel sobre uma crista de pedra — um dragão tão antigo quanto os primeiros juramentos, seus olhos brilhando como brasas na penumbra eterna.

Lá embaixo, o povo do vale começava a se reunir. Nobres decaídos, portando mantos gastos com brasões esquecidos. Clãs de assassinos encapuzados, cujas lâminas já provaram o sangue de imperadores. Sacerdotes de sangue com suas mitras negras e pergaminhos escritos em pele de traidor. Bestas falantes com olhos humanos e bocas costuradas.

Todos vestiam-se como para um funeral que nunca acabou: casacas de veludo puídas, colares de espinhos, máscaras de ferro fundido que escondiam rostos que talvez não quisessem ser lembrados.

Blade suspirou ao ver a multidão.

— Esses caras vivem num teatro... e eu achando que era o dramático da história.

A passos firmes, atravessou o pátio central do Palácio das Cinzas, cruzando pontes de pedra que levavam a portas góticas cobertas de runas esfareladas. Adentrou o Salão da Coroa, onde o teto era alto demais para qualquer candelabro alcançar e onde o silêncio pesava como o próprio julgamento.

No centro, um trono esculpido em dentes fossilizados erguia-se como uma heresia coroada. Ao lado dele, dois candelabros vivos — torsos demoníacos retorcidos, sussurrando preces em línguas mortas, as chamas saindo de suas bocas abertas em eterno grito.

Diante do trono, três figuras o aguardavam. Eram os Juízes, uma casta antiga que governava o vale durante o vácuo de poder. Suas vestes eram longas e bordadas com fios de prata necrosada. As máscaras, adornadas com penas de corvo, ocultavam qualquer vestígio de humanidade.

O primeiro falou, com voz seca como um manuscrito queimado:

— Você não é sangue puro.

O segundo, franzindo o nariz por trás da máscara afilada:

— Ainda tem cheiro de céu.

E o terceiro, a voz mais baixa, mais cruel:

— Tem chifres, mas alma de homem. Como espera que o povo das trevas se ajoelhe diante de um mestiço?

Blade deu mais alguns passos até o trono e se sentou com uma calma que incomodava. Os olhos semicerrados, o corpo relaxado como o de um lobo fingindo sono.

— Simples, — disse, ajeitando a capa sobre um dos braços. — Eu não espero que ajoelhem. Só espero que pensem duas vezes antes de tentar me arrancar daqui.

Silêncio.

Então, do teto, uma criatura caiu com um baque surdo. Tinha seis olhos costurados com linha prateada, patas longas demais para sua espinha, e movia-se como um pensamento maligno encarnado.

Blade se levantou num movimento fluido. Girou as adagas com um floreio quase teatral.O primeiro golpe cortou duas patas. O segundo, a garganta.A criatura evaporou em sombra líquida, deixando apenas o cheiro de incenso queimado e pecado antigo.

Os Juízes observaram, imóveis.

— Isso foi uma provocação, ou só um teste mal feito? — Blade perguntou, limpando a lâmina no interior de sua bainha com um gesto impaciente.

— Foi... necessário, disse o Juiz central.

— Que bom. Agora podemos falar como adultos?

As paredes tremeram com o soar grave de um sino. Um chamado profundo, que ecoava por salões secretos, criptas e torres abandonadas.

Era a convocação para o Conselho da Sombra.

A Sala de Espelhos Escurecidos era onde o destino do Vale era traçado. Um salão octogonal, cercado por colunas de basalto polido, com tapeçarias vivas que mudavam conforme os olhos que as olhassem. No centro, uma mesa redonda feita do tronco de uma árvore envenenada há séculos — suas veias negras ainda pulsavam levemente.

Os líderes do vale se reuniram: barões que caçavam com demônios, condes que bebiam promessas em taças de prata maldita, matriarcas imortais, necromantes, mestres de guildas clandestinas.

Todos com suas máscaras, suas poses, seus venenos.

Blade os observou de cima do trono, o único sem máscara.

— Me escutem, morceguinhos do subterrâneo, — disse, com um sorriso lento. — Eu não vim aqui pedir licença. Nem pra governar, nem pra respirar. O Olho Negro caiu. E eu ajudei a enterrá-lo.

Um murmúrio percorreu o salão. Murmúrios aqui podiam matar.

— Mas eu também sei que vocês gostam de regras. De cerimônias. De intrigas de corredor. Então vamos fazer o seguinte: fiquem com seus títulos, seus salões, seus joguinhos... desde que saibam que eu sou o que segura a lâmina no fim da linha.

Silêncio. Tenso como o estalar de uma corda prestes a arrebentar.

Blade levantou-se. Atravessou o salão em silêncio. Parou diante de um dos Juízes, agarrou sua máscara e a arrancou com um estalo seco. Jogou-a no chão e pisou sobre ela com força.

— Aqui está minha coroação.

As chamas vacilaram. O mundo pareceu prender a respiração.

Então, uma figura se ergueu — uma mulher alta, trajando uma túnica bordada com fios de sangue petrificado. O rosto, outrora coberto, revelou-se belo e cruel, como uma rosa negra com espinhos de aço.

Ela retirou a própria máscara e sorriu.

— Que seja. As sombras aceitam um novo senhor. Desde que ele saiba... que aqui, confiança é veneno, e o trono... sempre morde.

Blade retribuiu o sorriso. Os olhos brilharam com o reflexo das chamas vacilantes.

— Ah... Eu adoro veneno.

E, por um instante, todos os presentes souberam: o Vale das Sombras havia encontrado seu novo lorde.

Não um rei por direito. Mas um senhor por conquista.

E agora, passadas algumas horas após toda as comoções que Blade causou...

No alto da Torre dos Sussurros, onde o vento era tão frio que congelava até os ecos, Blade e Noctheron observavam o vale.

O dragão estava deitado sobre os blocos de pedra quebrados, a cauda enrolada em espiral, os olhos semicerrados. Parecia uma estátua esculpida em carvão, se não fosse pela brasa viva que escapava de suas narinas a cada suspiro.

Blade, com os cotovelos apoiados na mureta, fitava o horizonte roxo do Vale das Sombras.

— Engraçado, não? — disse ele. — Quando eu era moleque, sonhava em encontrar meu lugar no mundo. Aí me dizem que sou parte demônio, e de repente sou o gerente regional do inferno medieval.

Noctheron bufou uma pequena labareda, indiferente.

— Não é um título, Blade. É uma maldição com uma coroa.

— Ah, que ótimo. Eu queria um reino e ganhei um castigo com tapete vermelho. E o melhor: um povo que só usa máscara porque tem vergonha da própria cara.

O dragão moveu a cabeça em sua direção, os olhos como lanternas infernais.

— E mesmo assim... você está sorrindo.

Blade olhou para ele e deu de ombros.

— Porque é divertido. E porque eles acham que estão me usando. — Ele se virou, o olhar afiado como suas lâminas. — Mal sabem que estão brincando com fogo. Literalmente, no seu caso.

Noctheron deixou escapar um ronco gutural, algo entre o riso e o aviso.

Enquanto isso, nos salões inferiores, em uma biblioteca secreta disfarçada de mausoléu, cinco dos principais líderes do vale reuniam-se à sombra de estandartes antigos.

— Ele não é um de nós, — sibilou o Duque Carven, mexendo o cálice com vinho azulado, mais preocupado em não manchar a túnica do que em manter a compostura. — A linhagem dele é uma piada. Metade homem, metade... sei lá o quê.

— Ele é imprevisível, — disse a Matriarca Vessra, acariciando uma adaga cerimonial enquanto suas cobras de cabelo sibilavam em uníssono. — Não participa das cerimônias. Não joga os jogos. Não sorri quando deve...

— Ele tirou minha máscara na frente de todos! — gritou o Juiz destituído, ainda segurando os cacos com um ar dramático. — Isso é equivalente a me decapitar no teatro da política!

— Precisamos agir. Rápido, — disse o Barão Algreth, que sempre parecia estar suando, mesmo na sala mais fria do castelo. — Um veneno, talvez. Ou um duelo forjado. Algo tradicional. Mortes discretas, como manda o protocolo.

A reunião ganhava tom conspiratório, com papéis espalhados, mapas secretos e diagramas de golpe de estado — quando uma sombra gigantesca cobriu as janelas de vitral negro.

Um rugido.

A torre tremeu.

Todos congelaram.

Do lado de fora, pairando no ar, estava Noctheron, seu corpo colossal iluminado por chamas internas. Sobre sua cabeça, em pé como se estivesse num púlpito infernal, estava Blade — capa esvoaçante, braços cruzados, expressão de tédio entediado.

Ele não disse nada. Apenas os encarou. Um a um.

Lá dentro, o silêncio se abateu como um manto de chumbo.

— Ah, murmurou o Duque Carven, rapidamente escondendo o plano de assassinato sob uma travessa de queijos.

— Talvez... devêssemos esperar... — disse Vessra, tentando parecer serena enquanto recolhia os venenos da mesa com uma agilidade nada digna.

— Sim, sim, — completou o Juiz, recolocando um pedaço da máscara quebrada no rosto. — Seria... imprudente. E... de muito mau gosto... apressar as coisas.

O Barão suava em rios agora.

— Podemos... chamá-lo para jantar? Uma celebração? Um gesto diplomático!

Lá fora, Blade continuava olhando. Um sorriso irônico se desenhou lentamente em seus lábios. Ele fez um gesto com os dedos — dois toques leves na têmpora, como quem diz: “Estou de olho.”

Noctheron soltou uma baforada flamejante só por diversão, derretendo parte do vitral com forma de gárgula.

A sombra sumiu.

Os cinco ficaram em silêncio por longos segundos.

Então, a Matriarca Vessra se levantou, ajeitando o manto.

— Pois bem... quem quer chá?

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