Ficool

Chapter 6 - TÍWAZ

— Que noite do caralho. — a frase escapou da enraivecida chanceler, sem sucesso, tentando se controlar. 

Tsaritsa, junto de oito assessores terceiranistas, visitava Tíwaz no Templo da Cura. 

Donatien e as servas também testemunharam, num singelo televisor chuviscado, o final da luta da arquiduquesa. 

Quando a transmissão foi encerrada, a tela desligada voltou a refletir o que estava ao redor. 

A chanceler se retirou ao receber a informação de que os telefones na diretoria exigiam a presença dela, e foi acompanhada dos membros do escritório. 

— Que foi a comoção no final da luta? — viram-se os quatro a sós novamente, e Tíwaz assumiu a curiosidade. 

— A fhauren terminou o noivado. 

— Noivado? 

— Não conhece as Três Leis Cinzentas? 

— Receio que não. — tudo era novidade para Tíwaz. 

Explicou Pomarola romantizando:

— A Lei do Poder. O vencedor pode exigir que o derrotado se torne seu noivo.

— A Lei da Liberdade. — sentava-se Donatien confortável numa das poltronas, afundado na maciez. — Que foi o que aconteceu com a rabuda. O vigente contrato de noivado pode ser encerrado unilateralmente. 

— Não estou com bom pressentimento, e a última lei? 

— A Lei do Juízo, chamada nas más línguas de Lei da Humilhação. O vencedor tem o direito de reivindicar uma das noivas do derrotado. Alguns dos mais fortes têm dezenas de noivas. O que me lembra do caso de nossa rainha, Gloriana III. Ela teve dez noivos, perdendo um na final do Ultimato da geração dela. Por isso nosso reino tem a oligarquia de nove suseranos. Consegue imaginar o tamanho da merda quando ela morrer? 

— Receio que não. 

— Você é idiota, Tíwaz? Acha que os nove vão beber e dialogar sobre quem sentará no trono? É torcer para que nossa rainha dure, pelo menos, até eu morrer, depois ela que se foda com os nove cornos, já estão acostumados mesmo. — Donatien riu e acompanhou-o Tíwaz, com Zenith advertindo:

— Meu senhor, seria prudente não ofender a tudo e todos que cruzarem nosso caminho, meu pescocinho e o de minha prima também estão em vossas mãos.

— Zenith, não é a tudo e todos. E Tíwaz, você esqueceu da transfiguração? O que aconteceu? Eu poderia ter te matado, aliás, talvez eu tenha conseguido. A punição desse crime não é só a morte, é o destituir de títulos da família do assassino. Seria preferível você me matar, ou, até perder essa luta. — e Donatien pensou por alguns segundos, adicionando. — Não, ser derrotado não, pelo menos, não agora. A maioria só assiste a apresentação dos novatos, e depois o Ultimato, até lá já esqueceram esse desastre. Se bem que há chances de me verem como superpoderoso, o que os decepcionará em meu próximo duelo, duvido que… 

— Senhorio… — Zenith sentou no colo de Donatien, que falava mais a si, imerso nas próprias preocupações. 

— Sinto muito, não sei o que aconteceu. — via-se Tíwaz numa posição absurda.

Ele não sabia quase nada sobre fhaurens, vampiros ou a Árvore Cinzenta, e sequer tinha planos, ao mesmo tempo, era grato por esse meandro de mentiras ter o tirado da prisão em Guarnidora. 

Tudo o que podia fazer era fingir normalidade, e levar a situação até o limite. 

— Não sinta, aliás, eu é que lhe devo pedido de perdão. Sou mais velho, e transformado, mesmo que tenha me formado numa Arcana privada com vampiros vagabundos, deveria ter percebido tua inexperiência, o problema é que não sou bom em sentir auras, nunca fui. 

— Você chorou como um bebê. — provocou Pomarola, e sentou ao lado da prima, na outra coxa do corpulento Donatien. 

— Não foi tanto assim. 

— Foi sim. — insistiu na troça, Zenith. 

Abraçou as duas Gremory, e decidiu os próximos passos do grupo:

— Vamos explorar esse lugar!

— Podemos todos ser expulsos, senhor. — e fez eco à prima, Pomarola:

— Espere uns dias até a próxima insanidade. 

— Não, ele tem razão. — atraiu Tíwaz a atenção das mulheres, e do surpreendido Donatien. — É melhor aproveitarmos a chance, depois vão começar as aulas, e quem sabe o que nos espera. 

Na verdade, pretendia Tíwaz aprender o máximo possível sobre o lugar, e nada melhor que aquele grupo de desajustados para ensiná-lo sem despertar suspeitas. 

Era noite quando saíram e, do pátio diante das seis colunas do Templo da Cura, eles vislumbraram a imponência de Monte Abeto. 

A maior das árvores tinha quilômetros de altura, de raízes para cima, apontando como coroa de inexoráveis diademas contra o céu, e galhos para baixo, em todos os andares, por dentro e por fora das construções, e até abaixo da ilha flutuante

Era o Palácio de Obsidiana inteiro esculpido diretamente no Monte, com cidades inteiras por dois mil andares, e mais torres do que o grupo se dispôs a contar.

Diante da visão era como sonho e pesadelo, pedras criando pontes e corredores labirintiformes. 

As cidades e florestas iam ao horizonte, não fossem as nuvens carmesins, seria como olhar qualquer metrópole da superfície. 

Estátuas de avernos em até cem metros protegiam as muralhas entre os andares. 

Escomunais jardins suspensos resguardavam flora e fauna de todo o mundo. 

Sementes de sul e norte, leste e oeste, ocupavam espaçamentos lado a lado. 

E de cerrado e tundra eram as sombras das árvores e dos arbustos, com pequenos roedores, grandes quadrúpedes, e pássaros acostumados a viver desconhecendo a superfície. 

Completavam-se as cores e tons das flores orientais e ocidentais, muitas dessas subindo pelas paredes de andares inteiros, criando verdejantes murais no negror arroxeado dos cristais da estrutura. 

O poder vampírico que conjurava as nuvens nunca permitia a visão completa da obra, e em todos os andares os alunos caminhavam e conversavam animadamente. 

Risos eram compartilhados, e brincadeiras os faziam esquecer, momentaneamente, o clima que em breve os tomaria, competição, e ânsia por capital. 

O cume do Monte era ao centro da ilha. 

Bondinhos elétricos ajudavam na locomoção entre os andares, e elevadores subterrâneos eram comuns e obrigatórios. 

Estações ferroviárias, trinta e três ao todo, percorriam as arcologias das trinta e três províncias sobrepostas, cada uma tendo dezenas de andares, com cidades de servos e estudantes, e dirigíveis e carruagens a vapor de modelos variados.

— Não é uma escola, é um reino inteiro! 

— No tempo da Chuva, quando o oceano cobriu até as montanhas, existiam muitas outras ilhas flutuantes iguais a essa. A capital Véu do Pendor, onde nasceu Awaelésfér, era o lar de seis milhões de habitantes, ou é o que os mitos dizem. 

— O que aconteceu com as outras ilhas? — Pomarola não sabia ler, mas adorava ouvir as história ancestrais.

Ela abraçou Donatien, adentrando o dirigível interprovincial agarrada ao senhor. Os nobres a olhavam com desdém. 

— A maioria caiu. 

— Caiu? — certo temor transpareceu no tom da serva. 

— Isso, quando ativaram o Crisol algo aconteceu. Mas, não se preocupe Pomarola, isso foi há oitocentos e dezesseis anos. — a explicação de Donatien foi corrigida pela segundanista ao lado, fhauren de cabelos alaranjados longos e olhos negros sem pupila, pequena, com menos de um metro de altura:

— Na verdade nosso calendário não marca a queda das ilhas, e sim a data do acordo de paz entre fhaurens e humanos. O Crisol foi desativado milênios antes. 

Era o ano de 816 CU. Que se refere ao Conclave da Unificação, como é batizado o período contemporâneo. 

Abriram-se as portas do dirigível, e os vinte e seis alunos saíram. Outra fhauren chamou a atenção do grupo:

— Vocês são primeiranistas? — de cabelos castanhos emoldurando a face. Corpo de finura incomum. Por trás de óculos enferrujados, ela os encarava sem entender o que faziam ali. 

— Estamos explorando. — assumiu Pomarola, perdida diante do Distrito do Narval, na floresta de olmos e jacarandás, com jardins de gérberas e rosas negras entre rios artificiais de água salgada. 

Muitos dos alunos conversavam em bancos, coretos, pérgolas, alpendres, e caramanchões, ou por estradinhas térreas entre prédios de dormitórios, vizinhos de comércios alimentícios exalando saborosos aromas de pães e doces. 

Era notável que nas rodas de amizade as humanas nunca se reuniam com as fhaurens. 

— Bem, vocês estão no lugar errado. Deveriam jurar na cerimônia de abertura. Cada mestre escolhe dois servos para alimentar, e ensinar pelos próximos quatro anos, então… — a fhauren de cabelos alaranjados brincou, completando a frase da compatriota em uniforme de Sempre Noite. — Tem uma chance de vocês serem expulsos na primeira noite de aula. Boa sorte, novatos. — e as duas rumaram entre as folhas caindo, como neve lilás, dos galhos dos jacarandás. 

Frustrado, o grupo retornou ao dirigível. 

Depois de tempo considerável, outros alunos também entraram no veículo. 

A maioria sentava nos bancos, só o casal de transformados terceiranista ficou em pé, beijando-se, ele com as mãos por baixo da saia dela, encostada na janela traseira. 

Para a surpresa do grupo, a rota não retornou ao andar em que estavam, e sim rumou ao oposto, passando pela borda da ilha. 

Campesino haras com dezenas de cavalos foi visto, e instalações com estábulos que guiavam, em grama pela pradaria, até o hipódromo. 

Campos de golfe, com lagoas e colinas, com rios e cachoeiras, entre vilas menores, ali Tíwaz levantou e perguntou ao maquinista sobre a cerimônia de abertura, e o velho respondera de olhos arregalados sem tirar as mãos do timão:

— Vocês estão completamente loucos! — apesar da aparente raiva e falta de paciência, sob o olhar atento dos outros estudantes estranhando a mudança de curso, o timoneiro desceu o dirigível numa praça quase vazia. 

A atenção dos poucos ao redor seguiu os passos do grupo de amigos e, após a conversa com os guardas locais, uma frase pode ser distinguida em alto e bom tom:

— Mas a cerimônia já acabou… 

E assim, Tíwaz, as primas e Donatien, viram o dirigível se afastar e retornar aos ares. 

Tiveram de esperar outro veículo, e dessa vez foram apenas os quatro e o novo timoneiro-maquinista, num dirigível de consertos cheio de peças, ferramentas e instrumentos metálicos. 

Subiram tanto que as nuvens vermelhas retornaram cobrindo tudo ao redor, fazendo água escorrer dos vidros tremendo com a altitude. 

Desceram numa passarela de obsidiana. 

Os quatro foram envoltos pelas brumas. 

O vento soprava forte, e quando Zenith desequilibrada segurou no parapeito, pode ver os prédios distantes quilômetros abaixo, com o mover das névoas escondendo-os. 

Dali, uma misteriosa silhueta adquiriu contrastes conhecidos. 

— Não é possível. — recebia-os a chanceler, no arco do aeródromo particular da diretoria.

— Eu posso explicar. — insubmisso, Gremory Donatien preparava a inverdade quando fora interrompido:

— D' Cecil?

Ao lado de Tsaritsa haviam outros membros do Conselho Estudantil, e entre eles um mestre extremamente alto, o homem que reconheceu Donatien. 

— Mestre Irvine! — Donatien correu e abraçou o forte, que fazia até o gordo libertino parecer menor. 

Há muito não se encontravam. 

Era Irvine figura pública, dos oito finalistas da geração dele do Ultimato, e amigo íntimo da família D' Cecil. 

Começou os estudos aos cinquenta e nove anos de idade. 

Foi o décimo mais velho primeiranista da história da Árvore Cinzenta. 

Desde o primeiro ano, em contato com sangue fháurico, pouco envelhecera até ali, vinte e sete anos depois. 

E crescia mais ano após ano, em gordura, músculos e altura, nesse encontro Irvine tinha dois metros e noventa e sete centímetros.

Quando esse soube da presença do filho de Ilarionovitch, seu parceiro de desventuras desde a infância, fez questão de o apadrinhar como servo. 

— Não esperava menos do filho de Munífrieg, mas, por que faltar à cerimônia de abertura?

E tudo foi explicado, do incidente com Tíwaz até a exploração de dirigível por rotas desconhecidas. 

Dali, Irvine levou Gremory Donatien junto das servas, e algumas horas depois apresentou os aposentos deles, na Vila Aurora no centésimo nono andar. 

Era o Conselho Estudantil o órgão que escolhia as moradas dos primeiranistas, mesmo que os estudantes fossem livres, para comprar ou alugar outras residências nos muitos andares. 

Permaneciam na sala da chanceler durante a noite, a mesma, trabalhando com papéis no gigantesco móvel de salgueiro com dezesseis telefones negros lado a lado, e Tíwaz, deslocado, em pé, diante de uma das janelas com visão para os três anéis de asteroides que cingiam o planeta Alcáçova. 

— E o que eu faço com você? — suscitou Tsaritsa descontraída. 

Ela o salvou, e ele mentia em troca. 

O garoto sorriu sem jeito, e pensou em revelar tudo.

Via-se derrotado, impostor.

A mente de Tíwaz repetia que ele não deveria estar ali. 

Antes que o menino tomasse a iniciativa, Tsaritsa recebeu curta ligação e mandou que entrassem. 

Pela porta em ruínas, duas fhaurens adentraram o escritório. 

Uma alta e forte, de olhar penetrante e desgosto ao perceber a presença do humano. 

A outra figura era jovem, com a pele dourada das descendentes de Borgianwä I. 

Traços que Tíwaz imaginou reconhecer, logo afastando o pensamento, deixando de encará-la.

Seguiram juntos da diretoria. 

Era a mestra, a fhauren Moeg'Tullam Reis Schelfan'yr.

E era a duo de Tíwaz, a fhauren Yorranna Wilmot D' Gryzaekov. 

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