Faz duas semanas que a gente chegou na cidade.
A casa da minha avó tem um cheiro que não existe em mais nenhum lugar do mundo. Canela com poeira antiga, lençol limpo e erva-doce. As janelas são enormes, as paredes falam com o vento e a luz entra sem pedir permissão.
Às vezes, parece que tudo aqui ainda está esperando meu pai entrar pela porta.
Mas ele não vai entrar.
A última vez que estivemos aqui foi no Natal, dois anos atrás. Eu lembro do Daniel rindo alto, da minha mãe ajudando na ceia, do meu pai dançando com a vó Nena na sala, como se o tempo tivesse voltado pros anos 80.
Esse ano, não teve Natal. Só caixas, silêncio e olhares que evitavam se encontrar por muito tempo.
Depois que ele morreu, a vida perdeu o barulho.
A mudança pra cá não foi uma escolha. Foi o que sobrou.
Daniel apareceu no terceiro dia.
— Tá viva, Leninha? — ele gritou da porta, carregando dois picolés e uma mochila.
— Quase. — respondi da rede do quintal.
— Você precisa sair. A cidade é pequena, mas cheia de coisas estranhas. Vai amar.
Daniel tem essa energia de gente que nunca parou quieta por mais de dez segundos. Alto, magro, cheio de sarcasmo e referências de música clássica que ninguém entende — e ainda assim, charmoso. Ele parece ter nascido num teatro.
E, claro, não veio sozinho. Atrás dele, entrou um garoto de camiseta larga e chinelo, equilibrando três sacolas de supermercado.
— Lena, esse é o Lucca.
— Oi, Lena. — ele sorriu de um jeito tão tranquilo que parecia ter dormido doze horas seguidas, diferente do Daniel, que parecia estar sempre com café na veia.
— Oi. — respondi, meio sem graça.
Eles dois juntos eram tipo um yin-yang esquisito: Daniel, uma explosão de caos; Lucca, pura calmaria.
No fim do dia, Daniel já tinha me convencido a ir conhecer o centro da cidade. A pracinha, o brechó, a padaria antiga que ainda aceitava fichas, o cinema abandonado onde diziam que o projetor funcionava sozinho à noite.
Lucca vinha junto, segurando a mão dele como quem segura um cachorro elétrico na coleira.
E no meio do passeio, Daniel solta:
— E aí, preparada pro segundo ano?
— Não.
— Ótimo. Porque antes disso, você vai pra uma festa. Hoje. Piscina. Gente legal. Música. Confia em mim.
— Não gosto de piscina.
— Nem de gente, nem de calor, nem de festa. Já entendi. — ele revirou os olhos. — Mas a sua cara de luto eterno precisa de um susto de verão. Bora.
Chegamos à festa no fim da tarde, era entre 19 a 20 horas.
O anfitrião era um cara bem animado, o ´´Pinguim``, que até agora não entendi o porquê do apelido.
A casa enorme, jardim com luzes penduradas, música tocando numa caixa Bluetooth gigante, cheiro de cloro, álcool, cigarro e refrigerante. Uma piscina azul e cheia de gente rindo alto, alguns já estavam bêbados,outros loucos o suficiente para ter uma overdose, outros dançando como se fosse carnaval.
Daniel desapareceu cinco minutos depois. Lucca me ofereceu uma latinha de refri, ja que deixei claro que não colocaria uma gota de álcool na boca.
— Ele sempre some assim? — perguntei.
— Sempre. É o jeito dele de socializar. Some, mas volta com histórias. — ele sorriu.
Fiquei sozinha encostada numa pilastra, no modo observadora. Uma camisa básica, short jeans, tênis preto com meu cadarço vermelho, cabelo solto. Meu piercing novo ainda latejava.
Meu deus, eu estava parecendo uma estranha, ah é, eu era uma estranha no meio daquela gente.
De tanto tempo parada, minha bexiga resolveu me expulsar, então fui a procura de um banheiro.
Assim que comecei a andar por aquela casa enorme, vi tantas situações. Primeiro uma menina vomitando no canto da sala e a amiga dela desesperada tentando ajudá-la, enquanto um grupo de meninas a olhava com desprezo e deboche.
Um moleque, que por sinal parecia ser muito mais novo, tentava colocar uma garrafa inteira de uísque para dentro, enquanto o pessoal gritava ´´MIKE, MIKE, MIKE``
Será que a mãe do Mike sabe disso?
Quando cheguei no andar de cima da casa, havia tantos adolescentes se beijando, que loucura. Um menino, que não cheirava muito bem veio em minha direção
— Oii linda — Ele disse com os olhos caídos
Fala sério, era nove da noite, como eles conseguiam estar assim
— Oi — Respondi tentando manter a distância
— Veio sozinha?— Ele perguntou se aproximando, parecia que queria me beijar.
— Na verdade não. — Respondi desesperadamente tentando encontrar um lugar pra fugir.
Então entrei na primeira porta que vi.
Era um quarto todo azul, com vários posters na parede, cheio de personalidade. O pinguim tinha muita cultura, quem diria.
Vi que tinha um banheiro dentro desse quarto então pensei em usar, mas assim que abri a porta, congelei.
No mesmo segundo, ela virou.
Uma garota. Nua. Molhada. Em pé dentro do box de vidro aberto.
— AAAAA, QUE MERDA — ela gritou.
— MEU DEUS, DESCULPA, NÃO SABIA QUE TINHA GENTE.
Ela agarrou uma toalha fina e se enrolou como pôde, correndo pro canto. E como se a cena já não fosse suficientemente apavorante, o chuveiro decidiu enlouquecer: a mangueira se soltou da base e começou a girar como uma cobra furiosa, cuspindo água pra todo lado.
— AAAAA, SEGURA ISSO! — ela gritou, com a voz esganiçada.
Entrei no impulso, tentando agarrar a mangueira, mas escorreguei no azulejo molhado e bati o joelho. Ela, tentando ajudar, tropeçou na toalha frouxa e quase caiu junto. A cena devia parecer um filme de comédia pastelão.
Depois de alguns segundos que pareciam eternos, conseguimos desligar o chuveiro. Ficamos ali. Encharcadas.
Meu cabelo colado no rosto.
Ela com a toalha torta, grudada ao corpo, me olhando com os olhos arregalados de raiva e... alguma coisa entre vergonha e incredulidade.
— Você é maluca? Quem entra num banheiro sem bater? — ela disparou.
— Quem deixa a porta destrancada numa casa cheia de gente? — retruquei, ofendida.
— É MEU QUARTO.
— Ah.
O silêncio caiu pesado, só quebrado pelo pingar da água escorrendo pelo azulejo. A música abafada da festa ecoava lá fora, distante demais pra me salvar.
Ela me analisou de cima a baixo, ainda ofegante. Ombros estreitos, a pele quente e úmida, os cachos grudados no rosto, e aqueles olhos pretos enormes, que pareciam gritar mais do que as palavras.
Eu devia sair. Pedir desculpa. Fugir.
Mas tudo que consegui dizer foi:
— Achei que fosse o banheiro. Normal. De visita.
— Parabéns. Agora ele é o banheiro do trauma.
Ela virou de costas, batendo os ombros no meu, segurando a toalha com uma mão só, e saiu batendo a porta atrás de si.
Fiquei ali. Sozinha. Encharcada.
Respirando fundo.
Pensando que, sinceramente, talvez eu devesse ter ficado em casa.
Voltei pro jardim tremendo de raiva. Daniel me achou primeiro.
— O que aconteceu? — ele perguntou, rindo.
— Invadi o chuveiro de uma completa desconhecida.
Ele gargalhou.
— Ah, a Maya?
— Que?
— A garota do cabelo cacheado, meio baixinha, cheia de atitude?
— Sim?
— É. Boa sorte com essa aí.
— Boa sorte? por quê?
— Porque ela vai te odiar. E você vai sonhar com ela.
Revirei os olhos, mas minha mente já repetia a cena em looping.
Depois de tudo me deixei levar e decidi que precisava beber alguma coisa mais forte do que refrigerante. Peguei uma cerveja na mesa — quente, amarga, horrível. Engoli mesmo assim. Depois outra.
Lucca apareceu do nada, meio preocupado.
— Tá tudo bem
— Tô ótima. — respondi, já sentindo as bochechas quentes.
— Ótima com cara de desastre.
Daniel surgiu de repente, com glitter no rosto e uma boia de flamingo inflável no braço.
— Vem dançar, Lena! — ele puxou minha mão.
— Eu não…
— Vem. Não tem não.
E eu fui. Meio desajeitada, rindo contra a minha vontade. Lucca batia palma do lado, como se estivesse orgulhoso de uma criança que deu o primeiro passo.
Foi quando eu a vi de novo.
Maya.
Agora de short jeans e uma camiseta larga, o cabelo ainda úmido colado no rosto.
Ela estava encostada no corrimão da varanda, com um copo vermelho na mão, me olhando. Não um olhar qualquer. Um olhar que era quase um desafio.
Meus pés tropeçaram no próprio ritmo.
Daniel notou.
— Ihhh… — ele sussurrou no meu ouvido. — A assombração do banheiro voltou.
Fingi ignorar. Mas não consegui parar de sentir os olhos dela me queimando por dentro.
A noite acabou comigo, Daniel e Lucca voltando a pé, rindo à toa.
— Você tava dançando, Lena. DANÇANDO. — Daniel repetia, como se fosse a maior vitória do ano.
— Foi um acidente. — respondi.
— Ah, claro. Igual você "acidentalmente" entrou no quarto da Maya. — ele piscou.
— Cala a boca.
Lucca riu baixo, aquele riso paciente.
— Gostei de você, Lena. — disse. — É raro alguém conseguir acompanhar o furacão do Daniel e ainda sair viva.
Quando cheguei em casa, ainda molhada de suor e lembranças, só consegui pensar em uma coisa antes de dormir:
A imagem daquela menina…por mais que tenha sido uma cena extremamente constrangedora, não conseguia tirar da minha mente , isso vai me assombrar pra sempre.