O sol nascia preguiçoso sobre os telhados de Valen, dourando as janelas da Guilda Caelum. O bar cheirava a pão fresco e madeira limpa; Garet já abria as janelas, assobiando baixinho enquanto limpava copos. O ar calmo contrastava com o que crescia nos bastidores.
Lucius observava o pátio interno pela sacada do segundo andar. Kael treinava os aprendizes em silêncio — cada movimento de espada era limpo, sem desperdício. Ao fundo, Lyara corrigia a postura de Darek, enquanto Mira concentrava-se num pequeno redemoinho de vento nas mãos.Nira e Naya, sentadas sob a sombra de uma árvore, brincavam com Aurus, que parecia mais uma montanha viva do que um lobo.
Por um instante, Lucius sorriu.Mas o som de passos firmes o tirou do devaneio.
"Relatórios das últimas missões," disse Friaren, entregando uma pilha de papéis.Lucius folheou rapidamente. "Três missões de escolta, duas de coleta... e uma devolvida sem pagamento?""Sim," respondeu ela, cruzando os braços. "A caravana de grãos da casa Valcrest. Dizem que o cliente desapareceu antes da entrega."Lucius soltou um leve suspiro. "Desapareceu... ou foi apagado."
Friaren o observou em silêncio por um momento."Você acha que o barão está testando limites."Lucius assentiu. "Ele está sondando. Quer ver se reagimos.""E vai reagir?""Não ainda." Ele apoiou o queixo na mão. "Deixar o inimigo agir primeiro é a melhor forma de medir até onde ele se acha seguro."
Ela sorriu de leve. "Você fala como um adulto, mas ainda é só uma criança."Lucius piscou um olho. "E ainda assim, continuo ganhando as discussões."Friaren riu. "Convencido.""Realista," corrigiu ele, divertido.
A conversa foi interrompida quando Kael entrou, o semblante sério."Lucius. Temos problema.""Fala.""Um grupo chamado Espadas Negras foi visto perto da estrada leste. Bandidos profissionais. Recebemos relatos de que usam o brasão da família Valcrest nos anéis."
Lucius fechou o relatório devagar."Então o barão parou de brincar."
À noite, a guilda se reuniu no salão principal. O fogo da lareira projetava sombras nas paredes.Todos estavam lá — Lyara, Friaren, Kael, Rogan, os aprendizes e até Aurus, deitado como uma sentinela.
Lucius colocou um mapa sobre a mesa."Os Espadas Negras atacaram comboios vindos do norte. Disfarçam-se de mercenários independentes e depois culpam a Caelum.""E o barão?" perguntou Lyara, os olhos estreitos."Finge ignorância," respondeu Lucius. "Mas cada passo deles tem o ritmo dele."
Kael cruzou os braços. "Quer que eu cuide disso discretamente?""Não. Ainda não."Lucius traçou uma linha no mapa. "Eles estão agindo como lobos testando território. Se contra-atacarmos cedo demais, o barão vai ter desculpa pra mover soldados. Precisamos de provas — e de uma armadilha."
Rogan coçou a barba. "Você fala como um general, garoto."Lucius riu baixo. "Ou como um barman experiente.""Ei!" Garet gritou do balcão. "Deixa meu título fora disso!"
Todos riram, quebrando a tensão.Friaren, sentada ao lado de Lucius, observava em silêncio — o brilho do fogo refletia em seus olhos verdes."Você tem um plano, não é?"Lucius sorriu. "Sempre tenho."
Ele então desenhou um pequeno círculo no mapa, ao norte da cidade."Eles atacam comboios nesta rota. Amanhã, mandaremos um falso carregamento de minérios — um pedido oficial da nossa própria guilda. Dentro, colocaremos Kael e Lyara."Lyara estalou o pescoço, animada. "Então é caça, não armadilha.""Os dois," respondeu Lucius. "Eles acham que caçam... mas seremos nós que vamos observar."
Aurus ergueu a cabeça, rosnando baixo.Lucius o encarou e passou a mão em seu dorso. "Você também vai, parceiro. Mas nada de arrancar cabeça antes da hora."
Naquela noite, quando todos já dormiam, Lucius permaneceu sozinho na sacada, o vento balançando seu manto.
"Barão Valcrest..." murmurou. "Você quer poder... eu quero paz. Pena que um de nós vai ter que desistir."
Ao fundo, a lua se erguia sobre Valen, fria e silenciosa — prenúncio de sangue e aço.
...
O salão principal da mansão Valcrest cheirava a vinho velho e fumaça de lamparinas. Tapeçarias pesadas cobriam as paredes, e o brasão da família — uma torre envolta por serpentes — pendia acima da lareira.No centro, o Barão Loras Valcrest repousava numa poltrona de couro, taça na mão e olhar distante.
"Os relatórios chegaram, milorde."Um homem de manto negro se curvou à entrada. Era Vern, o capitão dos Espadas Negras — um mercenário de passado nebuloso e alma vendida por moedas."E?" perguntou o barão, sem sequer levantar o olhar da taça."Confirmamos que a Guilda Caelum aceitou o contrato falso. O comboio parte ao amanhecer."Um leve sorriso curvou os lábios de Loras. "E os homens estão prontos?""Sim, senhor. Vinte dos melhores. Ninguém sobreviverá para contar."
O barão apoiou o queixo sobre a mão, pensativo."Perfeito. Um ataque limpo, sem rastros. E quando os corpos forem encontrados, todos acreditarão que os bandidos estavam a serviço da Caelum. A reputação deles cairá antes mesmo de perceberem o golpe."
Vern hesitou por um instante. "Com todo respeito, milorde... o garoto é diferente. Ele não teme. Alguns dizem que pode—"O barão o interrompeu com um olhar gélido."Um prodígio, talvez. Mas ainda é só um menino brincando de líder. Heróis morrem jovens, Vern. Sempre morrem jovens.""Sim, milorde."
Loras levantou-se e caminhou até a janela. Lá fora, a lua iluminava os telhados de Valen."Este continente sempre pertenceu aos nobres. Os plebeus esquecem disso às vezes. Um garoto que ergue uma bandeira não muda séculos de poder."Ele virou-se, os olhos frios como aço."Mas serve como lição."
O barão tomou um gole de vinho e se aproximou de uma mesa repleta de mapas.Pinos de ferro marcavam caravanas, estradas e cidades próximas. Um deles estava cravado em Valen, cercado por anotações."Os Espadas Negras cuidam da sujeira, mas não devem ser vistos. Quando o sangue for derramado, quero testemunhas. Camponeses, mercadores, qualquer um. Espalhem os boatos: a Guilda Caelum perdeu o controle. São criminosos disfarçados de heróis."
"Entendido, milorde," respondeu Vern. "Mas... e se falharmos?"O barão riu, um som baixo e sem humor."Falhar? Não há falha quando se controla a narrativa, meu caro. Mesmo que percam a luta, ainda venceremos na boca do povo."
Ele parou por um instante, fitando as chamas na lareira."Esse garoto... Lucius Caelum... ele me lembra alguém.""Quem, milorde?""Eu mesmo. Antes de entender que esperança é apenas a distração dos fracos."O barão ergueu a taça num brinde solitário."Que os ideais dele queimem rápido — e que as cinzas alimentem o meu poder."
Quando Vern saiu, Loras permaneceu em silêncio, escutando o estalar do fogo.Mas, por um momento, algo o inquietou — uma sensação leve, como um olhar distante o observando.Ele se virou, encarando a janela.A rua lá fora estava vazia.E, ainda assim, por um instante, jurou ver dois olhos dourados brilhando na escuridão — como se alguém o estivesse estudando.
Um arrepio cruzou-lhe a espinha."Ilusão..." murmurou, voltando à poltrona.Mas o mal-estar persistiu, silencioso, sutil — o primeiro presságio de que o jogo não estava tão sob controle quanto ele acreditava.
