Ficool

Chapter 39 - Ecos da Distância, Sombras Próximas.

A carruagem balançava suavemente, um ritmo constante que embalaria um homem menos preocupado ao sono. Mas Lucius, Baronete Arcano de Freimann, mantinha-se alerta, os olhos fixos na paisagem que se desdobrava além da janela. Cinco dias. Cinco longos dias o separavam de Velunor, a capital do reino, e da reunião de emergência do Conselho Arcano. Ao seu lado, dois de seus guardas mais leais e experientes cavalgavam, suas silhuetas firmes contra o céu da manhã. Eram uma presença reconfortante, mas a verdadeira batalha, Lucius sabia, travava-se em sua mente.

Nos momentos de solidão, quando a conversa com os guardas cessava e a noite caía sobre a estrada, Lucius abria seu diário. A chama bruxuleante de uma pequena lamparina arcana iluminava as páginas enquanto sua pena deslizava, registrando não apenas os eventos da viagem, mas as preocupações que o assombravam. Escrevia sobre Elian, sobre a força perigosa que despertara em seu filho, sobre o orgulho e o medo que essa constatação lhe trazia. Escrevia sobre Maria, sua amada esposa, e a angústia silenciosa que via em seus olhos. E escrevia sobre os estranhos eventos que assolavam seu feudo e, ao que parecia, todo o reino.

Durante as paradas em estalagens ou postos de troca, Lucius lia os relatórios que havia trazido consigo, enviados por outros feudos. Um padrão perturbador começava a emergir. Relatos de artes arcanas distorcidas, de feitiços que falhavam ou se manifestavam de formas inesperadas. Fenômenos naturais incomuns – névoas que surgiam em dias claros, ventos que mudavam de direção abruptamente, rios cujo fluxo se tornava errático. E os rumores, cada vez mais insistentes, de criaturas alteradas, bestas que antes eram familiares e que agora demonstravam uma ferocidade e uma aparência grotesca.

No terceiro dia de viagem, em uma cidade movimentada que servia de entreposto comercial, Lucius teve um encontro arranjado com Lorde Harion Velm, um nobre influente da região sul, conhecido por sua astúcia política e sua vasta rede de informações. Encontraram-se em uma sala reservada de uma taverna respeitável, longe de olhares curiosos.

— Baronete Freimann — cumprimentou Lorde Velm, um homem corpulento com um sorriso que não alcançava seus olhos frios e calculistas. — É um prazer revê-lo, embora em circunstâncias tão... incertas.

— Lorde Velm — respondeu Lucius, mantendo a formalidade. — Agradeço por seu tempo. A situação em meus domínios é preocupante, e os relatórios que recebo de outros feudos apenas aumentam minha apreensão.

Lorde Velm serviu-lhes vinho, seus movimentos deliberados.

— De fato. O reino está... inquieto. Alguns diriam que a Coroa perdeu o controle, que as antigas proteções estão falhando. — Ele tomou um gole de vinho, observando Lucius por cima da taça. — Em tempos como estes, Baronete, alianças se tornam cruciais. É preciso saber com quem se pode contar. Alguns nobres, sabe, estão considerando... reorganizar suas lealdades. Por medo, talvez. Ou por ambição.

As palavras de Lorde Velm eram cuidadosamente escolhidas, mas a implicação era clara. Havia facções se formando, nobres que viam na crise uma oportunidade para aumentar seu próprio poder, talvez até mesmo se afastar da autoridade do Rei Theron.

— Minha lealdade é para com a Coroa e o povo de Malkut, Lorde Velm — respondeu Lucius, sua voz firme. — E acredito que a união, não a divisão, é o que nos permitirá superar esta crise.

Lorde Velm sorriu novamente, aquele sorriso vazio.

— Uma postura nobre, Baronete. Esperemos que seja suficiente.

A conversa continuou por mais algum tempo, mas Lucius sentia um desconforto crescente. As palavras de Lorde Velm eram como sondas, testando suas convicções, buscando fraquezas.

Naquela mesma noite, enquanto pernoitava em uma estalagem movimentada, Lucius teve a nítida sensação de estar sendo observado. Enquanto jantava em um canto discreto do salão comum, sentiu um olhar persistente em suas costas. Disfarçadamente, tentou identificar a fonte, mas viu apenas os rostos cansados dos viajantes e o movimento apressado dos servos. Mais tarde, ao subir para seu quarto, notou uma figura encapuzada parada no final do corredor escuro, que se retirou rapidamente para as sombras quando ele se aproximou. Seria um espião de Lorde Velm? Um arcanista interessado em suas recentes... atividades? Ou algo mais sinistro, um emissário de algum grupo oculto cujos tentáculos começavam a se espalhar pelo reino?

Lucius reforçou as proteções arcanas em seu quarto e dormiu com a mão próxima ao punho de sua espada. A viagem, que começara com a urgência de um chamado real, agora se tingia com as cores da intriga e do perigo velado.

Finalmente, no quinto dia, os contornos imponentes de Velunor surgiram no horizonte. A capital do reino, com suas torres altas e muralhas ancestrais, era um espetáculo de beleza e poder. Mas, à medida que se aproximavam, Lucius notou sinais da inquietação que permeava o reino. Cartazes de “Cidadania Vigilante” estavam afixados em postes e paredes, conclamando a população a relatar qualquer atividade suspeita. Os portões da cidade, normalmente abertos e acolhedores, estavam guarnecidos por um número maior de guardas, e Lucius pôde sentir a presença de reforços arcanos emanando das pedras antigas.

Ao se identificar para os guardas do portão, foi recebido por um jovem assistente do Conselho Arcano, vestido com as vestes cinzentas da ordem.

— Baronete Freimann — disse o assistente, com uma reverência formal. — Seja bem-vindo a Velunor. O Conselho aguarda sua presença. A cidade está... em alerta, mas esperamos que sua sabedoria e a dos demais conselheiros nos guiem através destes tempos sombrios.

Lucius assentiu, desmontando de seu cavalo. A jornada havia terminado, mas ele sentia que a parte mais difícil estava apenas começando. Velunor era linda, como sempre, mas sob a superfície da ordem e da beleza, uma corrente de medo e incerteza fluía, tão palpável quanto a brisa que soprava do rio.

Os dias que se seguiram à partida de meu pai foram preenchidos por uma rotina de treinamento que testava meus limites de formas que eu jamais imaginara. Minha bisavó Margareth era implacável. As manhãs começavam antes do amanhecer, com exercícios físicos que visavam fortalecer não apenas meus músculos, mas minha resistência e capacidade de concentração sob pressão. Correr por ladeiras íngremes carregando pedras, manter posturas de meditação desconfortáveis por horas a fio, tudo isso enquanto o Cristal de Fluxo em meu peito pulsava, exigindo que eu mantivesse um feitiço básico – uma simples chama, uma esfera de luz, uma brisa controlada – ativo e em perfeita sincronia.

O cristal era um mestre cruel. Qualquer desequilíbrio em meu foco, qualquer vacilação em meu fluxo de energia, e ele respondia com um som agudo e penetrante, paralisando instantaneamente o feitiço que eu lutava para manter. Era frustrante. Exaustivo. Havia momentos em que eu queria gritar, jogar o cristal longe e desistir.

Em um desses momentos de pura teimosia e frustração, tentei acelerar meu progresso. Durante um exercício de manter uma barreira de ar ao meu redor enquanto desviava de pequenos projéteis de gelo que minha bisavó lançava, forcei demais minha Força Vital. Queria impressioná-la, mostrar que podia ir além. O resultado foi desastroso. O Cristal de Fluxo emitiu um brilho intenso e ofuscante, seguido por um estalo seco. Senti uma dor aguda no peito, como se algo tivesse se rompido dentro de mim, e o mundo girou. Caí de joelhos, ofegante, a barreira de ar se dissipando como fumaça.

— Idiota! Imprudente! — A voz de Margareth era como um trovão. Ela estava ao meu lado em um instante, seus dedos frios pressionando meu pulso, seus olhos faiscando. — Você nunca aprende, Elian? Acha que a Força Vital é um poço sem fundo que pode esvaziar à vontade?

Eu esperava raiva, a dureza habitual. Mas por trás da fúria em sua voz, havia algo mais: medo. Um medo palpável que me atingiu mais do que qualquer grito.

— Eu só... queria... — comecei, mas ela me cortou.

— Você queria o quê? Se matar? Repetir a estupidez que cometeu com o Vermiscarro? — Ela me ajudou a levantar, sua força surpreendente para sua idade. — O cristal trincou. Você teve sorte de não ter sido algo pior.

Naquela noite, enquanto eu aplicava uma pasta curativa no cristal levemente rachado – um processo que, segundo Margareth, ajudaria a remendar as finas fissuras arcanas – ela se sentou ao meu lado, seu semblante mais suave, quase melancólico.

— Houve uma vez — começou ela, sua voz baixa, quase um sussurro —, muitos anos antes de seu avô nascer, antes mesmo do início oficial da guerra contra o Império de Alafia... eu era jovem, impetuosa, e acreditava que meu poder poderia resolver qualquer problema.

Fiquei em silêncio, sentindo a importância daquele momento de vulnerabilidade, algo raro vindo dela.

— Um pequeno vilarejo nas fronteiras do norte estava sendo ameaçado por um destacamento avançado de soldados alafianos. Eles eram brutais, saqueando e aterrorizando a população. As defesas locais eram fracas, e a ajuda da capital demoraria demais para chegar. — Ela olhou para as próprias mãos, como se visse nelas o peso daquela decisão. — Eu estava lá, visitando um antigo mestre. E tomei uma decisão. Usei uma arte que poucos conhecem, e menos ainda se atrevem a usar. Uma arte que mexe com a própria essência da vida e da morte: a Arte da Alma.

Senti um arrepio. A Arte da Alma era matéria de lendas, sussurrada em tom de temor e reverência. Era considerada proibida, perigosa demais.

— Com ela, consegui afastar os soldados. Não os matei, mas toquei em seus medos mais profundos, em suas almas, e eles fugiram aterrorizados, convencidos de que haviam encontrado um demônio. Salvei o vilarejo. — Um brilho fugaz de orgulho passou por seus olhos, rapidamente substituído por uma sombra. — Mas o custo... o custo foi severo. Perdi parte da minha sensibilidade arcana para sempre. Certas nuances, certas conexões com os elementos mais sutis, se foram. Foi como se uma parte de mim tivesse morrido para que outras pudessem viver.

Ela suspirou, um som carregado de um peso que eu mal podia compreender.

— Foi depois disso que perdi alguns de meus títulos, minha posição em certos círculos. Alguns me viram como uma heroína, outros como uma pária que havia recorrido a artes obscuras. Isso me tornou... mais rígida. Comigo mesma, e com os outros. Porque eu entendi, da maneira mais difícil, o preço do poder absoluto e da responsabilidade que ele acarreta.

Suas palavras me tocaram profundamente. Comecei a entender a dureza de minha bisavó, a razão por trás de sua exigência implacável. Não era crueldade, mas uma tentativa desesperada de me proteger de cometer os mesmos erros, de pagar o mesmo preço.

A partir daquele dia, minha abordagem ao diário arcano mudou. Não era mais uma tarefa, mas uma necessidade. Anotava cuidadosamente cada sensação, cada flutuação em minha Força Vital, cada pequeno sucesso ou fracasso no controle do Cristal de Fluxo. Comecei a “sentir” minha energia de uma forma mais detalhada, mais íntima.

O avanço significativo veio algumas semanas depois. Estávamos no final de uma longa sessão do Caminho do Fôlego Silente. Eu deveria manter uma pequena esfera de luz pulsante enquanto meditava, sincronizando-a com o cristal. A exaustão ameaçava me dominar, minha concentração vacilava. Então, lembrei-me de uma vela que costumava observar no estudo de meu pai, sua chama tremeluzindo suavemente, mas persistente. Foquei nessa imagem, nessa sensação de calma e constância.

E algo clicou. De repente, o fluxo se tornou mais fácil. A esfera de luz parou de oscilar erraticamente e começou a pulsar em um ritmo suave e estável, em perfeita harmonia com o cristal. Senti uma onda de energia calma percorrer meu corpo, não a torrente avassaladora da Fulmínea da Ira Ígnea, mas um rio profundo e constante. Abri os olhos e vi o Cristal de Fluxo brilhando com uma luz pura e contínua, sem nenhum som agudo, nenhuma falha.

Olhei para minha bisavó. Um leve sorriso, quase imperceptível, curvava seus lábios.

— Bom, Elian — disse ela, e havia um toque de genuína satisfação em sua voz. — Muito bom. Você está começando a entender.

Era apenas uma palavra de encorajamento, mas para mim, significou mais do que qualquer elogio extravagante. Eu estava no caminho certo.

Enquanto Elian se dedicava ao seu treinamento intensificado, Margareth Lindemberg não permanecia ociosa. A ameaça que pairava sobre a floresta e, por extensão, sobre o feudo, exigia sua atenção direta. Deixando Elian sob a supervisão de instrutores de confiança para os exercícios físicos básicos, ela se juntou ao Druida Thorne e a um pequeno grupo de guardas florestais experientes para investigar mais a fundo os mistérios que o Vermiscarro havia revelado.

Seguiram as pistas deixadas pelos movimentos erráticos da criatura antes de seu encontro com Lucius e Elian. O rastro os levou a uma clareira escondida nas profundezas da mata, um lugar que normalmente deveria fervilhar de vida. Mas o que encontraram foi desolador. A vegetação estava enegrecida e retorcida, como se tivesse sido queimada por um fogo frio. O solo estava seco e rachado, e um silêncio mortal pairava no ar. Não havia canto de pássaros, nem zumbido de insetos. Era como se a própria energia vital daquele lugar tivesse sido drenada, sugada por algo faminto e antinatural.

— Este lugar... está morto — murmurou Thorne, seus olhos percorrendo a clareira com uma expressão de profunda tristeza e repulsa. Ele se ajoelhou, tocando o solo com a ponta dos dedos. — A energia da natureza foi violentada aqui.

Enquanto os guardas examinavam o perímetro, procurando por mais pistas, um grito abafado veio de uma moita próxima. Correram na direção do som e encontraram um dos guardas paralisado, apontando para algo entre as árvores.

Era um cervo. Ou o que um dia fora um cervo. A criatura estava de pé, mas seus movimentos eram espasmódicos e descoordenados. Cristais negros e opacos brotavam de seu crânio como uma coroa grotesca, e seus olhos, normalmente gentis e alertas, estavam vazios, leitosos, desprovidos de qualquer sinal de inteligência ou vida. Ele rosnava baixinho, um som gutural que não pertencia a nenhuma criatura da floresta.

Antes que pudessem reagir, o cervo alterado avançou, suas patas batendo no chão de forma errática. Margareth agiu instintivamente. Com um gesto rápido e preciso, conjurou um feitiço de gelo. Lanças afiadas de pura energia glacial surgiram do ar e atingiram a criatura, imobilizando-a momentaneamente.

— Não se aproximem! — alertou ela, enquanto o cervo se debatia, os cristais em sua cabeça brilhando com uma luz sinistra. — Há algo terrivelmente errado com ele.

O Druida Thorne, com uma coragem nascida de anos de comunhão com a natureza, aproximou-se cautelosamente, murmurando palavras em uma língua antiga, uma súplica aos espíritos da floresta.

O cervo soltou um último urro gutural, uma mistura de dor e fúria, e então, para espanto de todos, seu corpo começou a se desfazer. Não em carne e osso, mas em uma fina poeira prateada que flutuou no ar por um instante antes de se assentar no chão, deixando para trás apenas os cristais negros, que agora pareciam inertes.

— Pelos Deuses Antigos... — sussurrou Thorne, pegando um dos cristais com um pedaço de pano. — Feitiços primordiais. Corrompidos. Alguém está usando conhecimentos ancestrais, distorcendo-os para fins nefastos.

Margareth examinou o local onde o cervo havia caído. O pó prateado não tinha cheiro, nem substância. Era como se a criatura tivesse sido um construto, uma marionete animada por uma força sombria.

Continuaram a investigação, seguindo um tênue rastro de energia corrompida que apenas Margareth e Thorne conseguiam perceber. O rastro os levou a uma antiga rocha partida ao meio, como se por um golpe de um gigante. Na superfície interna da rocha, encontraram uma série de runas gravadas profundamente na pedra. Eram antigas, diferentes de qualquer sistema rúnico conhecido no reino.

— Eu não reconheço este idioma — admitiu Margareth, traçando as runas com a ponta dos dedos. Havia um poder residual nelas, uma energia fria e desconfortável. — Mas é antigo. Muito antigo.

Thorne assentiu, seus olhos brilhando com uma mistura de fascínio e apreensão.

— São palavras de poder, Arquiduquesa. Palavras que não deveriam ser proferidas por mortais.

Margareth, usando um pequeno cinzel e um martelo que trazia consigo, conseguiu destacar um fragmento da rocha contendo algumas das runas. Envolveu-o cuidadosamente em um pano de seda e o guardou.

— Tenho um contato na capital — disse ela. — Um erudito especializado em línguas mortas e arcanas. Talvez ele possa decifrar isso.

Enquanto retornavam ao feudo, uma teoria começava a se formar na mente de Margareth, sombria e perturbadora. Alguém, ou algo, não estava apenas perturbando a floresta. Estava testando feitiços de alteração arcana, usando os nexos naturais de poder – as linhas de energia que percorriam a terra – como seus laboratórios profanos. E o equilíbrio do reino, tão delicado e interconectado, estava se deteriorando como consequência. Aquele Vermiscarro, o cervo alterado, a vegetação morta... eram apenas sintomas de uma doença muito maior, uma corrupção que ameaçava se espalhar.

Enquanto eu me dedicava ao meu treinamento e minha bisavó investigava os mistérios da floresta, Vivian também passava por suas próprias transformações. Desde que sua Runa da Bruma despertara, ela parecia mais... conectada ao mundo ao seu redor, de uma forma que eu não conseguia explicar completamente.

Começou com os sonhos. Ela me contava, com a naturalidade de uma criança, sobre sonhos nebulosos onde caminhava por florestas enevoadas, ouvia sussurros no vento e sentia a terra respirar sob seus pés. Às vezes, eu a ouvia murmurando palavras desconexas durante o sono, palavras que pareciam antigas, quase como encantamentos.

Então, veio a sensibilidade. Ela começou a sentir coisas que passavam despercebidas para os outros. Uma mudança súbita na temperatura do ar, uma corrente de vento inesperada, um formigamento na pele quando algo... diferente se aproximava. Era como se ela pudesse prever pequenas distorções arcanas no ambiente, como um animal que sente a aproximação de uma tempestade.

O evento que confirmou minhas suspeitas ocorreu em uma tarde ensolarada. Estávamos brincando perto do lago que ficava nos limites dos jardins da mansão. Eu praticava alguns feitiços de controle de pedra, criando pequenas esferas flutuantes, enquanto Vivian colhia flores silvestres. De repente, ouvi um rosnado baixo vindo da orla da floresta. Uma criatura pequena, do tamanho de um cão grande, mas com pelos emaranhados e olhos vermelhos brilhantes, emergiu das sombras. Não era nada que eu já tivesse visto antes, mas a aura de hostilidade e... corrupção que emanava dela era inconfundível. Era outra besta alterada.

A criatura nos viu e avançou, suas garras arranhando o chão. Preparei-me para conjurar um feitiço de fogo, mas antes que eu pudesse reagir, Vivian gritou. E então, algo extraordinário aconteceu.

Uma névoa fria e espessa surgiu do nada, envolvendo Vivian como um casulo protetor. A temperatura ao redor dela caiu drasticamente, e a névoa se expandiu rapidamente, engolindo a criatura alterada. A besta parou, confusa, seus rosnados transformando-se em ganidos de desorientação. Ela tentou avançar, mas parecia se mover em câmera lenta, como se a própria névoa a estivesse segurando.

Aproveitei a oportunidade. Com um grito, lancei uma pequena, mas precisa, Lança de Pedra que havia aprendido a moldar. O projétil atingiu a criatura no flanco, e ela caiu com um uivo de dor, desaparecendo na névoa antes que eu pudesse ver se o golpe havia sido fatal.

A névoa ao redor de Vivian começou a se dissipar lentamente, revelando-a parada, os olhos arregalados de surpresa, mas ilesa. Corri até ela.

— Vivian! Você está bem? O que foi isso?

Ela olhou para as próprias mãos, como se não acreditasse no que havia acontecido.

— Eu não sei, Eli... Eu só... fiquei com medo, e a névoa apareceu.

Quando minha bisavó Margareth soube do incidente, sua expressão normalmente severa se suavizou com uma pitada de surpresa e... algo que se assemelhava a admiração. Ela examinou Vivian cuidadosamente, não com a intensidade clínica que usava comigo, mas com uma curiosidade gentil.

— A Runa da Bruma... — murmurou ela, mais para si mesma do que para nós. — É raro que se manifeste com tanto controle instintivo em alguém tão jovem. Especialmente considerando que, no nível Bruma, a capacidade de manipular artes arcanas ativamente é quase nula. Os veios de mana ainda não estão formados, o núcleo da Runa mal começou a acumular energia.

Ela olhou para Vivian, um brilho estranho em seus olhos.

— Parece, pequena, que você é uma exceção. Não podemos ignorar seus dons.

A partir daquele dia, Margareth começou a dedicar um pequeno tempo para ensinar a Vivian alguns rudimentos sobre foco, respiração e segurança. Não era um treinamento formal como o meu, mas sim uma orientação gentil, ajudando-a a entender as sensações que experimentava, a reconhecer o fluxo de energia ao seu redor. Minha bisavó a chamava carinhosamente de “minha pequena névoa que pensa”.

Vivian e eu passamos a estudar juntos em certos momentos. Enquanto eu me esforçava para dominar o Cristal de Fluxo, ela se sentava ao meu lado, observando com uma concentração surpreendente para sua idade. E, às vezes, ela me surpreendia com perguntas incrivelmente precisas sobre fluxo arcano, sobre a intenção por trás de um feitiço, sobre a conexão entre a mente e a magia. Era como se ela tivesse uma compreensão intuitiva de coisas que eu lutava para aprender através de estudo e prática rigorosa.

Percebi também que, quando Vivian se concentrava profundamente, ou quando suas emoções eram particularmente fortes, seus olhos brilhavam com um tom prateado sutil, quase como o luar refletido na água. E a temperatura ao redor dela caía levemente, como se sua própria presença influenciasse o ambiente. Ela era, sem dúvida, sensível ao fluxo do mundo natural, de uma forma que ia além do despertar arcano comum.

Cerca de três semanas após a partida de meu pai, uma carta finalmente chegou de Velunor. Não era uma correspondência comum. O envelope era feito de um pergaminho grosso e resistente, reforçado com fios de prata, e selado com o brasão real em cera vermelha escura. Além disso, senti uma leve pulsação arcana emanando dele – um feitiço de confidencialidade, garantindo que apenas o destinatário pretendido pudesse acessar seu conteúdo.

O mensageiro real entregou a carta diretamente nas mãos de minha mãe. Quando ela tocou o selo, seus olhos se arregalaram levemente. Então, uma voz soou, clara e distinta, embora não houvesse ninguém falando na sala. Era a voz de meu pai.

“Maria, minha amada,” começou a voz, carregada de uma urgência contida. “Escrevo em circunstâncias graves. A reunião do Conselho Arcano tem sido... tensa. A situação no reino é mais séria do que imaginávamos.”

Minha mãe me fez um sinal para que me aproximasse, e juntos ouvimos a mensagem de meu pai, sua voz ecoando magicamente do pergaminho.

“Os relatos de outros feudos confirmam nossos piores temores. As anomalias arcanas são generalizadas. Feras alteradas, artefatos mágicos que se tornam instáveis e perigosos, tempestades que mudam de direção inexplicavelmente, e o mais preocupante, pessoas desaparecendo em áreas rurais, com sinais de rituais sombrios sendo encontrados nos locais.”

Houve uma pausa, e pude ouvir o som de meu pai respirando fundo.

“O Conselho está dividido. Há aqueles, como eu e sua avó Margareth, que acreditam que devemos investigar a fundo a origem dessa corrupção, reforçar nossos estudos arcanos e preparar defesas. Mas há outros, principalmente os ligados à Nobreza de Sangue-Puro mais conservadora, que temem o próprio poder arcano. Eles falam em limitar o uso das artes arcanas, em restringir o conhecimento, como se isso fosse resolver o problema. Um dos conselheiros mais vocais, Lorde Valerius – um homem que sempre desconfiei – chegou a sugerir a formação de uma ‘Força de Contenção Arcana’, cujo propósito seria mais policiar os próprios Arcanistas do que combater ameaças externas.”

Senti um arrepio ao ouvir isso. Limitar as artes arcanas em um momento como este parecia loucura.

“Recebi uma mensagem velada de um de nossos aliados no Conselho, o Marquês de Sylvandell. Ele suspeita que alguém dentro do próprio Conselho possa estar envolvido nos incidentes, ou pelo menos encobrindo a verdade por motivos escusos. Não temos provas, apenas suspeitas, mas a desconfiança aqui é palpável.”

“Não sei quanto tempo mais ficarei retido em Velunor. As deliberações são lentas, e as facções estão entrincheiradas. Mas saibam que penso em vocês a cada momento. Cuidem-se. Elian, continue seu treinamento com sua bisavó. Sinto que suas habilidades serão cruciais em breve. Voltarei assim que puder.”

A voz de meu pai se extinguiu, e o brilho arcano no pergaminho desapareceu. Minha mãe segurava a carta com as mãos trêmulas, seu rosto pálido.

— Alguém dentro do Conselho... — sussurrou ela, seus olhos cheios de uma nova apreensão.

O medo que sentíamos antes, a ameaça que pairava sobre nossa floresta, de repente pareceu se expandir, ganhando contornos mais sinistros e complexos. Não era apenas uma questão de bestas alteradas ou feitiços corrompidos. Havia política, traição e uma luta pelo poder se desenrolando nos mais altos escalões do reino. E nós, de alguma forma, estávamos no centro de tudo.

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