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Chapter 5 - O Guardião que não usa Mana

Vamos recapitular algumas coisas...

Meus pais me explicaram o quanto a transição de Caçadores para Guardiões mudou tudo.

Antes, apenas uma pequena parcela da população tinha permissão – e capacidade – para se aventurar em masmorras ou enfrentar monstros. Hoje, com o avanço das técnicas, do conhecimento, e claro, com o dinheiro certo... qualquer um com o mínimo de aptidão pode se tornar parte disso.

Mas o que realmente se expandiu nesse novo mundo não foi apenas o número de guerreiros. Foi o comércio. A produção e a venda de itens mágicos dispararam como nunca.

Armas encantadas, armaduras reforçadas, acessórios banhados em Mana... Esses objetos se tornaram essenciais, não só para quem enfrentava monstros, mas até mesmo para civis em regiões instáveis.

Por razões óbvias.

Armas mágicas podiam matar tão bem quanto feitiços. Armaduras encantadas podiam proteger tão bem quanto um escudo de mana.

A grande verdade por trás desses itens, porém, é que poucos eram realmente mágicos em essência.

Na maioria dos casos, eram apenas metais comuns, moldados com cuidado e lentamente banhados em Mana pura. Esse processo simples, repetido várias vezes, transformava algo banal em uma arma de guerra.

A Mana reforçava o material. Tornava-o mais resistente. Mais afiado e mortal.

Quando bem feito... o resultado era tão eficaz quanto o poder de um mago experiente.

Mas eu já sabia disso.

Na minha vida anterior, muito antes de tudo isso existir, eu já tinha entendido o princípio básico por trás das armas encantadas.

Tudo nesse mundo... absolutamente tudo... pode ser fortalecido com Mana.

Incluindo pessoas.

Existem dois caminhos para quem desperta o poder da Mana:

Os Condutores, que fazem a energia fluir para fora do corpo – manipulando elementos, criando feitiços, moldando a natureza ao seu favor.

E os Forjadores, que fazem o oposto – puxam a Mana para dentro de si, fortalecendo e moldando o seu corpo... ou usam a Mana para criação de itens mágicos.

Meu pai provavelmente é do segundo tipo, já que é um guerreiro. E também pelas histórias de exploração de masmorras que ele me contava às vezes. Mas ele nunca mencionou que usava magia.

E quanto mais penso nisso, mais estranho fica.

Meu pai enfrenta criaturas que poderiam matar pessoas comuns em segundos. Como fazer isso sem usar magia?

Na minha vida passada, existia um outro tipo de energia. Um poder reservado apenas aos deuses. Pelo menos era isso que minha deusa me dizia toda vez que perguntava.

Mas... algo ainda não bate.

Talvez eu encontre alguma coisa nos livros, já que por ser muito novo, eles não devem entrar em assuntos muito complexos.

Se bem que… entrei em um assunto bem complexo há alguns instantes atrás.

De qualquer forma, consegui ficar acordado por muito tempo dessa vez – e isso me rendeu o dobro de cansaço.

Ainda é de madrugada, acho que vou dormir um pouco…

***

— Eddy. — disse uma voz que parecia ecoar só meu subconsciente.

— Eddy, acorda.

“Que voz irritante.” Algo começou a me sacudir pelos ombros – de leve no começo… depois com menos paciência.

— Vamos, filho. Já chegamos. Acorda.

Abri os olhos devagar, meio perdido e sonolento, piscando algumas vezes pois estava tudo muito claro.

— O que foi?...— murmurei, com a voz rouca e fraca.

Senti meu corpo pesado, minha cabeça estava latejando um pouco… os típicos sintomas de quem dormiu além da conta e fora de hora.

Meu pai soltou um breve sorriso.

— Caramba… você apagou mesmo, hein?

Antes que eu tentasse falar alguma coisa, a voz doce da minha mãe cortou o ar.

— Meu amor… você devia ter ido dormir quando eu pedi.

Dei uma coçadinha na nuca, fiquei um pouco sem graça, com aquele sorriso preguiçoso de quem sabia que estava errado.

— Desculpe… eu acho que… exagerei um pouquinho.

Quando foi a última vez...?

Quando foi a última vez que eu tive um momento assim... em família? Na minha outra vida... isso era quase um luxo inalcançável.

Meu pai era um rei.

E reis... antes de serem pais, maridos ou homens comuns... são líderes. Líderes responsáveis por vidas além da sua própria. O povo sempre vinha em primeiro. Sempre.

Meus momentos com ele eram raros. Na maioria das vezes, eu só o via quando retornava de alguma campanha vitoriosa...

Mas nunca... nunca era sobre a família. Minha mãe... bem... ela sempre sorria. Mas eu sabia.

Sabia que por trás daquele olhar calmo, havia uma enorme solidão. Ela também era deixada de lado. Também era esquecida em meio à grandiosidade do homem que meu pai havia se tornado.

O único conforto genuíno... o único laço verdadeiro que eu tive naquela vida... foi ela.

Minha irmã mais velha.

Filha de uma concubina que eu jamais conheci. Mas que sempre esteve ao meu lado. Desde que me entendo por gente... até o dia em que...

“Não. É melhor não pensar sobre isso agora.”

Isso mesmo.

Esses dois são a minha família agora. Isso é tudo o que importa. Além disso, não preciso ter pressa. Irei aproveitar momentos como esse ao máximo e procurar por respostas quando estiver mais velho.

No instante em que saí do carro, vi Jéssica e Roberto na nossa frente conversando com alguém que eu não conhecia.

Foi Jéssica quem notou a gente primeiro. Ela veio até nós, toda animada.

— Olha só... acordaram o príncipe?

Meu pai riu de leve e respondeu, todo cheio de si:

— Bom... alguém precisava vir despertar a realeza, né?

Silêncio.

A piada foi ruim... Muito ruim.

Mas antes que a vergonha tomasse conta, aquela outra pessoa deu uma gargalhada.

— Hahaha! Você continua péssimo com piadas, hein?

Eu olhei para ele com mais atenção.

Sua pele era parecida com a de Jéssica, em um tom moreno meio dourado... Usava óculos redondos, com a armação fina, e estava de braços erguidos, com as mãos apoiadas atrás da cabeça. Totalmente relaxado.

Foi aí que ele virou para mim.

— Então esse é o Eddy?

Ele me encarou por um segundo, com um olhar curioso e meio brincalhão.

— Você parece mais com a sua mãe... ainda bem, né?

— Renan! — cortou Jéssica na hora, cruzando os braços. — Dá pra não assustar o menino?

— Tá bom, tá bom… — resmungou.

Meu pai soltou um risinho e balançou a cabeça. Foi então que Roberto entrou na conversa, com um sorriso debochado:

— Olha só… o tempo passa, mas algumas coisas não mudam. Lucas ainda fazendo piadas, e você rindo como se fossem boas.

Todo mundo riu – menos o meu pai, que fez uma cara de quem queria retrucar, mas sabia que seria pior.

— Enfim — disse Renan, esticando os braços com preguiça. — Acho melhor irmos logo. Marquei de encontrar com o André daqui a pouco, e adivinhem só? A gente tá atrasado.

Meu pai arqueou uma sobrancelha, olhando para os dois.

— Só nós três mesmo?

Renan deu de ombros, soltando um suspiro meio resignado.

— É… os outros preferiram ficar zanzando por aí. Disseram que queriam dar uma volta.

— Tô vendo que vou perder o almoço… — resmungou Roberto enquanto cruzava os braços.

— Vai nada — disse Jéssica. — Eu faço alguma coisa quando vocês voltarem. Agora vão logo antes que fiquem mais atrasados ainda.

Enquanto meu pai estava no carro enrolando a espada quebrada em um pano, eu me aproximei um pouco.

— Pai, eu posso ir com vocês até o ferreiro?

Ele olhou pra mim, deu um leve sorriso e balançou a cabeça.

— Pode sim. Vai ser bom você conhecer ele também. Ah… — Ele voltou até o porta-malas, revirou uma bolsa por alguns segundos e puxou algo lá de dentro. Era aquele cristal de mana. — Não posso esquecer isso.

— ...Hã? — Minha boca se abriu antes mesmo de pensar. Foi a única coisa que saiu.

Na nossa antiga casa, eu costumava visitar o escritório dele e me perguntava por que nunca tinha vendido aquilo. Mesmo ganhando bem pelo ranking alto, guardar algo tão valioso por tanto tempo não fazia sentido. A não ser… que fosse um tipo diferente de cristal.

Os cristais de mana variam muito de cor. Geralmente são brancos, quase transparentes. Quando são carregados com um tipo específico de mana elemental, a cor muda conforme a afinidade. Se isso não acontece, o cristal assume uma coloração azul-escura – e quanto mais mana acumula, mais claro e brilhante fica.

Apesar de pequeno, cabendo facilmente na mão, aquele cristal brilhava como se tivesse quatro ou cinco vezes mais mana do que um comum do mesmo tamanho. Aquela espada certamente não poderia ser consertada com pouca energia mágica.

— Vai levar isso pra vender? — Renan apareceu do nada ao lado da gente. Eu me assustei com a presença súbita dele. — Não acho que esse cristal vá ser suficiente pra consertar a espada.

— Não é pra vender. É pra energizar a espada quando o André consertá-la. Não fazia sentido guardar mais de um, já que ela ficou quebrada por tanto tempo.

— É… se você pudesse usar mana, não teria tantos problemas com ela…

— ...O quê!? — Foi como levar um soco no peito. Uma reação que escapou da garganta antes de qualquer pensamento.

— Bom, eu não posso me desfazer dela pra qualquer um. Afinal, só comprar não é o bastante para usá-la.

"Ele não pode usar mana? Como assim? Ele é só um humano normal?" Eu estava em choque.

Se ele não conseguia usar mana, então como lutava de igual pra igual contra feras mágicas? Mesmo com equipamentos mágicos, ferir uma criatura dessas já seria difícil por si só.

Talvez algum feitiço de fortificação? Existiam encantos antigos e incomuns com esse propósito… mas nunca me interessei o suficiente para entender a natureza deles e como funcionavam. Mesmo assim, acho que não é isso.

— Ei, pirralho! — Renan me deu uma pancadinha no meio da testa com o dedo. Nada forte, mas me tirou do transe na hora. — Tá bem? Por que congelou aí?

— Ah, eu tô sim… só fiquei...

Vi Priscila caminhando com a irmãzinha dela, olhando para o quintal. O brilho do sol combinava com ela e com o sorriso que ela dava.

"Acho que tô focando demais nela..." Era reconfortante, de algum jeito. E tenho a sensação de que isso não vai mudar quando ela crescer.

Talvez tenha algum talento oculto. Sempre tive essa sorte – ou azar – de reconhecer pessoas assim só de olhar.

— Ah, então era isso, é? — Renan comentou. Não consegui ver bem a expressão dele – a luz refletia forte nos óculos, como se ele fizesse de propósito. Mas claramente não falou aquilo só por curiosidade.

— Isso o quê? Agh, meus olhos! — Levei a mão na cara, o reflexo me cegou por um segundo. — Vira pra lá, que droga...

— Para de encarar as duas e anda logo. Ou você não vai?

— É claro que eu vou! Só me dá um segundo — Esfreguei os olhos com força, então corri em direção ao meu pai. — Pai! Ele disse que não pode usar mana. Isso é verdade?

— É, eu não posso usar Mana — respondeu, rindo do meu espanto. — Mas existem outras formas de lutar, filho. Quer que eu te mostre depois?

— S-sim! Claro que sim!

— Tudo bem. Depois a gente conversa. Melhor irmos logo, o Roberto tá cada vez mais impaciente.

— T-tá bom. Vamos então!

Seguimos a pé. Parece que ficava há três quadras de distância até esse cara chamado André . Pelo visto, eu estava mais animado do que eles.

Meu pai e o Renan ficaram conversando no caminho. Estavam falando sobre o motivo do Renan ter decidido não participar das pesquisas do Etérium sintético. E o Roberto? Estava quieto, mas um pouco mal humorado. Acho que o seu apetite deve ser enorme, considerando o seu tamanho…

Ao reparar melhor em Renan, notei que havia uma bolsa de couro presa na cintura dele. Estava guardando um livro, que também parecia ser feito de couro.

Se ele também é um Guardião, então esse livro só pode ser um grimório. ‘Um lutador tem seus punhos. Um espadachim tem sua espada. E um mago, o seu grimório’... ou talvez um cajado… ou talvez os dois...

Também há outros membros na guilda deles, e eu ainda nem perguntei o nome... Mas vou descobrir mais cedo ou mais tarde.

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