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Chapter 4 - Viagem para Almeirim

Já faz mais de três anos desde que reencarnei. Minhas pernas já estavam desenvolvidas o bastante para que eu pudesse me locomover sozinho.

Aprender o idioma local não foi tão difícil como pensei que seria. Eu tinha uma leve impressão de que minha audição era mais sensível quando ainda não tinha nem mesmo um ano de idade, acho que isso me permitiu prestar mais atenção em alguns detalhes do idioma deles.

Minha mãe já não utiliza palavras distintas com tanta frequência como antes. Ela dizia que era fluente em dois idiomas, e que aquele era o idioma nativo dela. Então decidi focar a minha atenção no idioma que usaria com mais frequência – o português.

***

— Nós vamos nos mudar?

— Sim — minha mãe respondeu —, não é muito longe daqui. O papai poderia ficar longe da gente por muito tempo por causa do trabalho, então decidimos nos mudar para evitar isso.

— aah, mas para onde?

— Vamos nos mudar para próximo de Almeirim, no estado vizinho. Leva algumas horas de viagem de carro. — disse meu pai.

Fiquei refletindo por um tempo, até me lembrar da espada no escritório dele. Sempre ia até lá para ler algum livro enquanto olhava para ela. Mesmo estando danificada, parecia ter vida própria.

— Vai consertar aquela espada também?

— Ei, ei… Como você sabe disso?

— Ela parecia abandonada no escritório junto com aquele cristal de mana.

— Duas coisas resolvidas de uma só vez filho. Tem um ferreiro em Almeirim que tem os materiais que faltam para consertá-la.

Aquela espada tinha um design completamente diferente de qualquer outro equipamento dele. Sua empunhadura parecia ser feita de escamas douradas, e sua lâmina, apesar de danificada, emanava um brilho natural.

A espada não me chamava atenção só por ser bonita, algum tipo de energia parecia emanar daquela espada. Sentia um leve frio na espinha toda vez que estava perto dela.

"Aquilo é…?"

'Energia Espiritual', ou 'Mana'. Diferente daquele cristal onde a energia parecia ter se acumulado em seu centro, a espada certamente estava emanando energia.

Como eu sei disso? Apesar de usá-la no passado, era impossível para mim detectá-la como um usuário normal conseguiria, então fui forçado a memorizar a sensação que ela me causava.

E parece que dessa vez não é diferente. Se bem que…

"Não realizei qualquer treinamento para poder usar magia, talvez eu devesse pedir para meus pais me ensinarem."

Espera um pouco aí…

"Parando para pensar agora, eu nunca vi eles usarem magia uma única vez, será que eles não sabem usar também?"

Fiquei tão focado em aprender o básico que nem pensei nisso antes. Eles também não me deixam ler alguns livros, por não ser recomendado para crianças, e os deixam em um lugar na prateleira que não consigo alcançar…

Adoraria aprender a usar Mana seguindo as etapas corretas dessa vez, mas acho que terei que esperar mais um pouco.

***

O celular do meu pai estava tocando na sala. Ele veio na mesma hora para atender.

— Ah, oi. Como vai?— Meu pai atendeu a ligação com um sorriso no rosto, mas não pude escutar o que a outra pessoa dizia.

— Sim, eu havia pedido para Cynthia avisar ela que eu queria conversar com você. Soube que está indo para Almeirim também, certo? Eu e minha esposa decidimos nos mudar para lá.

"Parece que não somos os únicos que irão se mudar, ele deve estar pedindo a ajuda com a mudança ou algo do tipo…" pensei. Estava um pouco frustrado, não conseguia ouvir nada…

— Não se preocupe com isso, vamos estar preparados para a viagem. Nos vemos neste fim de semana. Até mais.

Desligou o telefone.

— Era o Roberto?— Minha mãe perguntou.

— Sim, combinamos de ir para Almeirim no próximo sábado, às quatro da manhã.

— Nesse sábado?!— minha mãe respondeu, um pouco surpresa.— Será que vai dar tempo de nos desfazermos dos móveis até lá?...

— Não se preocupe, eu falei com o dono de uma loja de móveis usados e ele vai vir dar uma olhada amanhã.

— Ótimo! Então vou dobrar algumas roupas agora mesmo! — respondeu entusiasmada. — Inclusive, àquela lingerie preta que comprei.

Minha mãe piscou descaradamente enquanto mordiscava o lábio. Meu pai respondeu, meio sem jeito: — ah, certo…faça isso.

"Lingerie, o que é isso?" Assim que meus pais me viram, ficaram levemente espantados por eu estar os observando.

Talvez fosse algo que uma criança não deve escutar. Isso me deixou bem curioso, acho que vou aproveitar e perguntar sobre isso mais tarde. Tenho certeza de que vai ser muito engraçado.

***

O dia da viagem finalmente chegou. A noite já tinha caído, já era madrugada, as malas estavam prontas. A casa que antes era cheia de móveis e objetos espalhados agora parecia vazia… Fria.

Nunca imaginei que me mudaria de casa tão cedo. Mal tive tempo de explorar os arredores sem a companhia da minha mãe.

Grande parte do que aprendi sobre como as pessoas se comportam e como a economia funciona foi graças a ela. Minha mãe sempre me levava junto quando ia fazer compras ou resolver algo importante.

Ficava imaginando como seria a nova cidade… Será que as pessoas seriam muito diferentes? Costumes, aparência, comportamento... Tudo isso me deixava curioso.

Enquanto pensava, o som da campainha ecoou pela casa vazia.

Meu pai foi atender.

Decidi segui-lo, queria ver quem eram as pessoas que estavam nos visitando tão tarde. Ao abrir a porta, me deparei com uma cena inesperada.

Um homem gigantesco, com mais de dois metros de altura, estava parado ali. Ao seu lado, uma mulher sorridente segurava uma criança no colo. Ela era bem menor que ele, mal chegava na altura do ombro daquele colosso.

"Se ele for um Guardião como meu pai, deve ser extremamente forte…"

Eles se cumprimentaram de forma descontraída.

— Ora, ora — a mulher olhou diretamente para mim com um olhar curioso, — quem é esse garotinho aqui?

Minha mãe, sorrindo de orelha a orelha, me pegou no colo e me ergueu.

— Esse aqui é o nosso filho, aquele que eu vivia falando! O nome dele é Eddy.

A mulher se apresentou com um jeito bem solto.

— Muito prazer, pequeno Eddy! Eu me chamo Jéssica — apontou para o homem ao lado dela, — e esse brutamontes aqui é o Roberto.

Ela deu uma risadinha e logo depois apontou para a menina queao seu lado.

— Essa aqui é a nossa filha, Priscila— um nome bonito que combinava com o jeito dela, — e essa dorminhoca no meu colo se chama Saphira.

Minha mãe me colocou de volta no chão. Me apresentei do jeito que sempre vi meus pais fazendo.

— Meu nome é Eddy Leister.— Jéssica pareceu surpresa com a minha postura.

— Nossa… Mas que educado. Parece até um homenzinho. Deve ser muito inteligente, não é?

Minha mãe riu.

— Inteligente ele é... Mas também é muito arteiro. Vive querendo escalar tudo o que vê. Preciso ficar de olho nele o tempo todo.

Nesse momento, meu pai se virou para Roberto.

— E o Renan? Onde ele está?

— Ele foi na frente — respondeu Roberto — Está representando a gente como ocupantes daquela área que vamos explorar. A nossa guilda é a principal responsável, mas ele precisava ir antes para resolver algumas coisas.

Meu pai assentiu.

— Ah, entendi… Questões de protocolo e tudo mais.

Enquanto os adultos conversavam, olhei discretamente para Priscila. Ela olhou para mim e deu um leve sorriso. Não sei porquê, mas isso me deixou meio estranho…

"O que foi isso?" Acabei virando o rosto, sem saber como reagir.

— Já está tudo pronto para irmos? — perguntou Roberto.

— Sim — respondeu meu pai — Já adiantei tudo o que precisava para vender a casa. Provavelmente nós iremos ficar em Almeirim por alguns anos.

— Perfeito! — disse Roberto animado — Quero chegar lá antes do almoço se possível.

— Mas que coisa… Se não está falando de masmorras, tá pensando em comida, ou bebendo!— Vanessa deu uma bronca de leve nele.

Roberto coçou a cabeça, sem jeito. Meus pais riram da situação.

— Vamos indo logo! Quero chegar cedo, haha —Roberto gritou em voz alta, ele claramente queria evitar aquele constrangimento.

— Aliás, Lucas. — Roberto virou um pouco o rosto. — Soube pelo Renan que aquele ferreiro também vai estar lá. Um ótimo acaso pra você dar um jeito naquela sua espada quebrada. Quero muito ver 'aqueles dois' em ação.

— Estão falando do André? — perguntou Vanessa — Eu pensei que ele estivesse em São Paulo agora…

— Ele estava, mas começaram a exigir que gente como ele se vinculasse a alguma empresa ou guilda fixa. São Paulo tá ficando cada vez mais engessado… — Roberto balançou a cabeça, depois sorriu. — Quando viu as propostas de recrutamento para as expedições em Almeirim, se inscreveu na hora.

Ele fez uma pausa, depois completou:

— E não foi só ele. A gente também teve muita sorte de ser aceito... nossa guilda é bem pequena. Se tivesse mais gente na disputa, provavelmente teriam deixado a gente de fora. Aliás, essa espada é feita principalmente de Etérium, né? Esse metal vai ficar bem mais caro nos próximos meses.

— …huh? Como assim?— meu pai perguntou, espantado.

— …Você sabe que esse metal é muito difícil de conseguir, mas ouvi dizer que alguns cientistas – no mundo todo – tão começando a conseguir reproduzir o Etérium em laboratório — explicou Roberto, dando um sorriso meio cansado. — Claro, ainda é um processo caro e demorado… mas o simples fato de ser possível já tá mexendo com a cabeça dos investidores.

Ele apoiou o cotovelo na mesa e continuou, mais sério:

— Só que isso também virou arma pro mercado, né? Aqui no Brasil as coisas demoram pra chegar. A rede de informação é lenta, os atravessadores já tão inflando o preço do Etérium natural dizendo que o sintético 'não tem a mesma qualidade'. Balela pura, pelo que eu ouvi. Os testes iniciais mostraram que o material produzido em laboratório é praticamente idêntico.

Meu pai ficou pensativo.

— Isso deve mexer com a economia toda…

— Já tá mexendo — Roberto confirmou. — O governo não vai poder ficar parado. O Plano Real acabou de ser implantado, a moeda tá se estabilizando… Se o preço do Etérium disparar mais ainda, o Brasil vai ter que se posicionar. Ou investe pesado na produção própria… ou abre as pernas pra importar das grandes potências.

Ele olhou pra mim e deu um leve sorriso.

— Aliás… um dos cientistas brasileiros que tá nessa pesquisa… é conhecido teu, não é, Lucas?

Eu arregalei os meus olhos, surpreso. Mas meu pai não parecia nem um pouco surpreso.

— Conhecido meu?

— É. Aquele professor do Instituto… o cara sumiu do mapa depois do último congresso em Manaus. Disseram que foi convidado pra um projeto internacional sobre o Etérium sintético.

Eu fiquei em silêncio por alguns segundos, sentindo o peso da informação. Roberto deu de ombros, com aquele jeito pragmático dele.

— Em todo caso… é certo que o conserto não vai ser barato.

Meu pai soltou um riso baixo, meio sem humor.

— Heh… Se ele realmente estiver por lá, melhor ainda. Acho que só ele pode consertá-la sem correr o risco de perdê-la. Mesmo que acabe ficando muito caro… vale a pena.

Não sei explicar muito bem… mas tinha um peso estranho naquela fala. Como se ele não estivesse falando só da espada. Como se… de algum jeito… estivesse falando dele mesmo.

Minha mãe deu uma batidinha de leve no ombro dele.

— Très bien! Vamos deixar esse papo para quando a gente chegar em Almeirim, tá?

Meu pai assentiu, com aquele sorriso contido de sempre.

— Certo.

Logo depois, seguimos viagem, deixando o assunto para trás… pelo menos por enquanto.

Mas eu fiquei quieto, pensando na espada quebrada. Pensando naquele professor maluco.

Respirei fundo.

Ah, a propósito… a gente foi em dois carros separados.

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