Novo Amanhecer - [ Seis Horas Antes da Ruptura ] -
Neo Dawn brilhava como um farol no horizonte, uma cidade que nunca dormia. Torres de vidro e aço erguiam-se como lanças contra o firmamento, envoltas em anúncios holográficos brilhantes que dançavam em cores berrantes — vendendo de tudo, desde armas de última geração a cosméticos que prometiam juventude eterna.
Em rodovias suspensas, veículos aerodinâmicos circulavam em filas intermináveis, guiados por sistemas automatizados que zumbiam com precisão matemática. Lá embaixo, nas ruas congestionadas, multidões se espremiam entre barracas de comida, telas holográficas de jogos de azar e policiais corporativos em armaduras cinzas patrulhando cada esquina.
Era uma cidade de contrastes brutais: acima das nuvens artificiais, os distritos elevados abrigavam jardins suspensos, cúpulas de vidro e mansões que arranhavam os céus; enquanto nos níveis subterrâneos, onde a luz do sol nunca chegava, os becos cheiravam a ferrugem, fumaça tóxica e cadáveres esquecidos.
As corporações controlavam todos os aspectos da vida. Contas bancárias, remédios, transporte, segurança — tudo tinha um preço, e cada contrato era uma algema invisível. Os nascidos no topo respiravam o luxo das torres; os nascidos nas favelas lutavam para não serem engolidos pelo asfalto envenenado.
No coração de Neo Dawn ficava a Corporação Pandora , uma fortaleza de aço negro e vidro reflexivo que se estendia como um obelisco em direção às nuvens artificiais. Era mais do que um edifício — era a máquina de guerra da cidade, onde inovações militares nasciam, frotas eram forjadas e contratos capazes de moldar continentes inteiros eram assinados.
Foi lá que Mark Ravener construiu sua vida.
Nascido nos subsolo, em ruas onde o sol nunca brilhava, ele cresceu cercado de ferrugem e sucata. O que os outros viam como lixo, ele via como oportunidade. Desde a infância, desmontava e reconstruía máquinas quebradas, criando algo novo a partir de quase nada. Esse instinto, aliado a uma mente aguçada, o levou da obscuridade à cadeira de engenheiro-chefe em um dos departamentos militares mais respeitados do megacontinente.
Mark havia alcançado o que muitos consideravam impossível.
No entanto, para a elite, ele continuava sendo um intruso no mundo das torres de vidro. Seu talento era inegável, mas suas origens, imperdoáveis.
Foi no meio de relatórios e protótipos que a mensagem chegou.
Uma simples notificação em seu comunicador:
"Precisamos conversar. Encontre-me no Solaris Café, às 21h."
Assinado: Ellani Iro.
Mark encarou a tela por um longo momento, como se as palavras tivessem mais peso do que deveriam. Com um suspiro profundo, desligou o aparelho e ajeitou o casaco.
Naquela noite, sob a chuva manchada de neon da grande cidade, algo não parecia certo.
(...)
O Solaris Coffee ficava no quadrante central do Neo Dawn, uma das áreas mais glamorosas da cidade. Entre fachadas adornadas com luzes holográficas e vitrines exibindo carros suspensos como joias, o Solaris se destacava como um discreto refúgio de luxo.
Mark atravessou a entrada, com o casaco ainda úmido da garoa fina que caía sobre a cidade. O aroma de café sintético misturado com especiarias artificiais o envolveu e, por um momento, ele se sentiu deslocado. Mesas de mármore preto e clientes vestidos com ternos impecáveis eram um lembrete cruel de que aquele não era o seu mundo — por mais que ele tivesse conquistado.
Mas ela estava lá.
Ellani Iro , elegante como sempre, com os cabelos prateados refletindo o brilho âmbar do café. Seus olhos violeta se ergueram ao encontrá-lo — mas não havia calor neles. Apenas uma frieza ensaiada, deliberada demais para ser casual.
"Mark…" sua voz saiu baixa, carregada de algo que ele reconheceu instantaneamente.
Ele se aproximou lentamente, puxou a cadeira e sentou-se à sua frente. Um silêncio sufocante pairou entre eles até que Ellani respirou fundo e disse:
"Não posso continuar com você."
As palavras caíram como lâminas. Mark permaneceu imóvel, mas por dentro seu peito se apertou. Ellani desviou o olhar, como se buscasse coragem em qualquer lugar que não fosse o olhar dele.
"Tem outra pessoa...", ela continuou, com a voz embargada por um segundo. "Alguém que pode me dar o futuro que eu mereço."
Os punhos de Mark se fecharam contra a mesa, o maxilar tenso. Antes que ele pudesse responder, uma sombra surgiu ao lado dela.
Um homem alto, com cabelos loiros impecavelmente penteados, vestindo um terno sob medida e um sorriso presunçoso. O herdeiro do conglomerado farmacêutico.
"Espero que você não esteja incomodando minha noiva, Ravener", disse ele, com um tom cheio de desdém.
Os olhos dourados de Mark o encararam, mas ele permaneceu em silêncio.
O herdeiro se aproximou, sussurrando só para ele ouvir:
"Sabe qual é o problema dos ratos das favelas? Você pode subir até o topo, mas o cheiro de ferrugem nunca sai da sua pele."
Mark respirou fundo, forçando-se a ignorar.
Mas então veio o golpe final.
"Sua mãe… pelo menos ela deve estar orgulhosa de você ter saído do buraco em que nasceu, hein?"
O estrondo soou antes mesmo que Mark percebesse.
Seu punho rasgou o ar e atingiu o rosto do homem com força brutal, jogando-o no chão em meio a suspiros de choque.
Por um instante, o Solaris Café congelou.
Copos pararam no ar, todas as cabeças se viraram, e o burburinho das conversas elegantes foi devorado por um silêncio pesado. Clientes abastados o encaravam com olhares críticos — alguns resmungando baixinho, outros exibindo apenas expressões de desdém. Para eles, o motivo não importava: Mark acabara de confirmar o estigma que o assombrava.
Ellani correu para o lado do homem caído, com o pânico estampado em seu rosto.
Mark se levantou, com o peito arfando, e olhou para ela uma última vez.
"Você me dá nojo."
Ele se virou e foi embora, seus passos pesados ecoando no chão de mármore.
Atrás dele, a voz do herdeiro cortou o silêncio, rouca e cheia de veneno:
"Eu vou destruir você, Ravener! Você nunca mais conhecerá a paz nesta cidade!"
(...)
A chuva caía fina sobre o Neo Dawn quando Mark entrou no carro. Luzes de neon brilhavam no para-brisa, distorcidas pela água, como se a cidade inteira zombasse dele. Ele ligou o motor, pisou no acelerador e deixou o Solaris Café para trás sem olhar para trás.
O caminho de volta à Pandora Corporation transcorreu em silêncio. Nas ruas, trabalhadores exaustos eram dispensados de turnos intermináveis; alguns o reconheceram e acenaram em agradecimento pela liberação antecipada. Ele apenas retribuiu o gesto com um leve movimento de cabeça, sem dizer nada.
Logo, ele estava dentro do prédio colossal, subindo para o seu escritório. Jogou o casaco na cadeira, tirou uma lata de cerveja do pequeno freezer e se sentou. Um gole. A amargura não era só da bebida — era a queimação da raiva que ainda o corroía por dentro.
Incapaz de se acalmar, ele deixou a lata pela metade e desceu até o Armazém Sul .
Não fazia parte dos corredores reluzentes de vidro e aço de Pandora. O Armazém Sul desafiava a imagem corporativa imaculada — um setor isolado, quase esquecido, destinado a protótipos descartados, peças descontinuadas e projetos congelados no meio do desenvolvimento. O ar cheirava a óleo queimado e metal frio, iluminado apenas por lâmpadas amarelas fracas que piscavam em ritmo irregular.
Mark tinha acesso ao local devido ao peso que sua posição carregava. Não tinha sido fácil: ele pagara caro para adquirir os direitos de um projeto condenado. Em troca, foi-lhe permitido manter o protótipo ali — restrito a este depósito esquecido, longe dos relatórios oficiais de Pandora.
Para os executivos, era apenas lixo caro.
Para Mark, era um sonho inacabado.
No centro do armazém estava o Titan Rover .
Um veículo colossal, com chassi reforçado forjado a partir de ligas experimentais, sustentado por seis rodas independentes — cada uma equipada com suspensão hidráulica projetada para terrenos extremos. Sua estrutura permitia que funcionasse tanto como um caminhão de reconhecimento em planetas hostis quanto como uma locomotiva modular, capaz de acoplar vagões para transportar suprimentos em grande escala.
O Titan Rover havia sido concebido para exploração planetária de longo alcance, um substituto versátil para comboios terrestres. Seu interior era equipado com compartimentos selados, sistemas de reciclagem de ar e até mesmo espaço para uma tripulação reduzida. Em teoria, poderia atravessar desertos de silício, mares congelados ou crateras lunares com a mesma eficiência.
Mas o projeto nunca saiu do papel.
Não por causa do design, mas da energia. Para que o Rover atingisse seu potencial máximo, cada unidade precisava de um reator termonuclear portátil — a mesma tecnologia usada para alimentar naves espaciais e robôs de guerra. A corporação considerou inviável desperdiçar fontes de energia tão valiosas em veículos terrestres.
E assim, o Titan Rover foi arquivado.
Mais um sonho sufocado pelo peso das margens de lucro.
Mas Mark jamais poderia abandoná-lo. Comprou o protótipo e o guardou ali, retornando a ele sempre que precisava se perder em algo maior que si mesmo. Ajustou circuitos, reforçou painéis, imaginou soluções alternativas de energia. Para ele, era mais do que uma máquina — era uma metáfora para sua vida. Uma prova de que mesmo projetos rejeitados poderiam se reerguer, se alguém tivesse a coragem de seguir em frente.
Naquela noite, o engenheiro deixou seus dedos correrem pela lateral metálica do Rover, sentindo o aço frio.
Ele arregaçou as mangas, puxou uma caixa de ferramentas para perto e acendeu as luzes auxiliares. Cabos serpenteavam pelo chão, telas iluminadas com linhas de código e diagramas.
" Estabilidade da suspensão: noventa e dois por cento… recalibrando atuadores hidráulicos… ", murmurou ele, digitando rapidamente. " Condensadores de fluxo ainda abaixo do ideal. Se eu pudesse estabilizar a transferência sem perda de energia… "
Ele deslizou sob a estrutura colossal com uma chave de torque, apertando parafusos, ajustando válvulas e limpando a graxa dos componentes. Cada movimento exigia força, e seus músculos respondiam como se buscassem alívio no trabalho repetitivo.
Para muitos, era um trabalho pesado.
Para Mark, era uma terapia.
O ritmo metálico das ferramentas abafava os ecos da memória — os rostos, as palavras que ainda ardiam em sua mente. Ali, sozinho com o Rover, ele podia fingir que o mundo exterior não existia.
Horas se passaram. O suor escorria pela testa, a cerveja esquecida na bancada estava sem gás. No entanto, o Titan Rover se mexeu com leves sinais de vida: motores de teste roncaram baixinho, luzes internas piscaram por um instante antes de se apagarem novamente. Mark se permitiu um sorriso torto.
"Você ainda respira, velho amigo. Só precisa de um novo coração." Ele bateu de leve no casco metálico, como se a máquina pudesse ouvir.
Então o som mudou.
As luzes do armazém piscaram e uma sirene ensurdecedora soou pelos alto-falantes. Uma voz robótica ecoou friamente pelo espaço:
Atenção. Nível de emergência vermelho. Todo o pessoal deve evacuar imediatamente. Isto não é um exercício. Repito: isto não é um exercício.
Mark vestiu o casaco, com as mãos ainda manchadas de graxa, e correu pelos corredores estreitos sem pensar duas vezes.
O chão tremia sob seus pés. Em cada esquina, ele cruzava com guardas armados correndo na direção oposta, rifles em punho, rostos tensos. Rádios estalavam com ordens caóticas:
"Equipe Delta, contenha o perímetro!"
"Relatório do setor leste, agora!"
"Reforços na entrada principal, movam-se!"
Mark não sabia o que estava acontecendo, mas o medo nos olhos deles lhe dizia o suficiente.
Acima, lâmpadas crepitavam, luz estroboscópica e sombra. Botas trovejavam contra o piso de metal, sirenes gritavam sem parar. Ele chegou a um salão mais amplo — o saguão interno de Pandora — onde técnicos largavam arquivos em pânico, drones enxameavam em formação cerrada, projetando avisos vermelhos nas paredes.
Seu coração batia forte no peito, mas seu instinto gritava apenas uma coisa: saia.
Finalmente, ele chegou à entrada principal. Portas automáticas imponentes, com dez metros de altura, escancaradas para a tempestade lá fora. Soldados se apressaram em formação, gritando ordens abafadas pela chuva torrencial. Helicópteros militares rugiam acima, seus holofotes cortando o céu escuro, tentando desesperadamente iluminar o que se escondia além das nuvens.
Mark olhou para cima.
As nuvens se agitavam de forma anormal, formando espirais negras como se um vórtice invisível estivesse rasgando os céus. Relâmpagos violetas cortavam o horizonte, refletindo-se nos vidros dos arranha-céus, e trovões ribombavam como fogo de artilharia.
Das ruas abaixo, ouviam-se gritos. Civis apontavam para o céu, com o horror estampado no rosto. Mark seguiu o olhar deles, mas tudo o que viu foi a escuridão convulsionando no céu — algo forçando passagem.
Um arrepio percorreu sua espinha.
E então, o mundo tremeu.
Primeiro, um tremor oco, como se um golpe tivesse sido desferido nas profundezas do núcleo do planeta. Depois, um rugido profundo que fez o próprio ar vibrar. O chão tremeu sob os pés de todos. Painéis se estilhaçaram do teto, vigas de suporte rangeram como ossos se quebrando.
Mark agarrou-se à parede mais próxima, mas toda a estrutura cedeu. Uma fissura abriu-se no saguão, o concreto rachando como vidro sob pressão. O chão desabou sob ele, arrastando seu corpo para baixo com estilhaços de aço, gritos e poeira.
A luz desapareceu. Ele foi engolido pela escuridão.
A queda parecia interminável. O vento uivava em seus ouvidos, misturando-se ao rugido da infraestrutura em colapso. Por um instante, o tempo pareceu se esticar — cada pedaço de concreto, cada barra de aço despencando ao lado dele, suspensos em um turbilhão em câmera lenta.
Então veio o impacto.
Seu corpo se chocou contra uma grade enferrujada e caiu no chão irregular. Uma barra de metal retorcida perfurou seu flanco, rasgando carne e músculos, alojando-se profundamente entre suas costelas. A dor explodiu, quente e lancinante, arrancando um grito rouco de sua garganta.
Acima, o saguão havia desaparecido. Sombras engoliam uma câmara subterrânea que ele nunca vira nos esquemas de Pandora. O teto desabado espalhava destroços pelo chão. Em meio à poeira, ele vislumbrou corpos esmagados em jalecos brancos — cientistas presos sob vigas caídas, com as mãos ainda segurando tablets e pranchetas estilhaçados, pegos em meio a uma análise.
Mark tentou se mover, mas a barra de aço o prendeu ao chão. Sangue quente escorria por seu flanco, cada respiração mais curta que a anterior.
Foi quando ele notou a luz.
No centro da câmara, semienterrado nos escombros, um cilindro de contenção jazia rachado e aberto. Dentro dele, flutuava um objeto que não pertencia a este mundo — um artefato esférico e pulsante, gravado com inscrições azuis brilhantes. Fragmentos de sua casca quebrada flutuavam sem peso ao redor dele, como se a própria gravidade se curvasse diante dele.
Então veio a queimadura.
Uma onda de calor percorreu suas veias, queimando como ácido sob a pele.
Ele ofegou, olhando para os braços.
Sua carne se contorcia por si só. Veias escurecidas, tinta se espalhando por elas, músculos se contorcendo em ângulos impossíveis. Garras começaram a sair de seus dedos, rasgando a pele com filetes de sangue.
"O que… o que está acontecendo comigo?!" Sua voz falhou entre soluços de dor.
Seu peito inchou demais, os ossos estalando sob a pressão, seu próprio corpo se dilacerando por dentro. Mark gritou, tentando se recompor, impotente enquanto a agonia o consumia.
Foi quando o artefato reagiu.
O cilindro fraturado sibilou, liberando uma ressonância estridente. Raios de luz varreram a câmara, passando por cima dos cientistas esmagados. Vozes se seguiram — não humanas, mas metálicas, tons sobrepostos em cadência alienígena, como se alguma máquina tentasse decifrar uma linguagem desconhecida.
Então a luz se fixou nele.
A voz mudou, ajustando-se, até que a clareza cortou o ruído:
"Hospedeiro potencial identificado. Integridade comprometida. Anomalia genética detectada. Iniciando contenção."
O artefato se inflamou, fragmentos se liquefazendo em uma torrente de partículas metálicas. Elas o atingiram como uma tempestade viva, atravessando suas feridas, seus poros, seus olhos e até mesmo sua boca.
Mark gritou quando o enxame o invadiu, sua mente dividida entre pânico e delírio. Em meio ao caos de vozes e dor, algo mais tomou forma — outra presença, diretamente dentro de sua mente.
Antes que a escuridão finalmente o reivindicasse, ele ouviu as palavras:
"Inicializando Protocolo: CORTANA."
E então, o esquecimento.
(Continuar...)
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