Ficool

Chapter 4 - Diante dos Olhos que Tudo Viram III.

Sua última morte foi a mais cruel.

Aconteceu em uma sexta-feira 13 — ironia ou maldição — quando Rodrigo, afundado em álcool mais do que de costume, viu sua sede de sangue transbordar.

Ele já não era mais guiado por objetivo algum.

Só ódio. Só fome. Só vício.

Pelas ruas mal iluminadas da periferia, seus olhos encontraram o que mais odiava naquele momento: felicidade.

Uma família. Um casal com um filho. Caminhavam juntos, rindo.

Rindo.

Ele os seguiu.

Como um predador.

Esperou.

Observou.

E uma hora depois, pulou o muro baixo da residência.

Arrombou a porta.

E entrou no que seria a cena final de sua monstruosidade.

Lá estavam os três: pai, mãe e filho. Sentados no sofá. Assistindo televisão. Uma noite comum. Uma noite qualquer.

Mas para Rodrigo, aquilo era um insulto.

Era como se o mundo cuspisse na memória da sua família, oferecendo aos outros o que ele nunca mais teria.

O homem se levantou, tentou proteger os seus.

Rodrigo foi mais rápido. Mais forte. Mais cruel.

Derrubou-o. Enforcou-o até apagar. Amarrou-o.

A mulher, desesperada, suplicava por seu filho.

Foi amordaçada. Amarrada.

O menino — que devia ter uns onze anos, a mesma idade que Rodrigo tinha quando perdeu tudo — foi imobilizado e jogado ao lado dos pais.

Rodrigo se aproximou do garoto.

Seu rosto trazia um sorriso grotesco, insano. Um reflexo da ruína que havia se tornado.

— Hoje… você vai sentir o mesmo que eu senti quando tinha a sua idade.

O garoto o encarou.

Olhos cheios de lágrimas. Cheios de terror.

Rodrigo acordou os pais. Os colocou frente a frente.

Lágrimas. Gritos abafados. Medo.

Nada disso o tocava.

Pelo contrário. Aquilo o excitava.

Rodrigo se deliciava com o pânico.

A agonia era sua droga mais poderosa.

Começou pelo pai.

Uma facada profunda na virilha.

A veia femoral cortada.

O sangue jorrou, pintando o chão.

Ele ria. Ria como uma criança diante de um brinquedo novo.

Depois olhou para a mulher.

Ela gritava pela mordaça, impotente, vendo o marido agonizar.

— Como se sente… ao ver seu marido morrer aos poucos? — ele sussurrou, como se aquilo fosse uma conversa íntima.

Então, cortou sua garganta.

Simples. Frio.

Sem hesitação.

Como quem desliga uma televisão.

Por fim, olhou para o garoto.

O único que restava.

Arrastou-o até o centro da sala.

Jogou-o sobre o sangue de seus pais.

O menino chorava sem parar.

Seu corpo tremia.

Mas Rodrigo já não via mais isso com olhos humanos.

Seu olhar era de fera.

De besta.

De demônio.

Qualquer uma dessas palavras serviria.

Exceto “humano”.

Rodrigo não era mais humano.

Após todas aquelas lembranças perturbadoras invadirem sua mente como uma torrente de ácido, Rodrigo sentiu a bile subir por sua garganta. Mas, naquele lugar — onde o corpo físico não existia — tudo o que restou foi o gosto amargo. Um gosto azedo que o enjoava por dentro, não pelo estômago, mas pela alma.

Ele caiu de joelhos, ou ao menos tentou. O chão não lhe oferecia resistência. Era como cair no vazio.

Seus olhos lacrimejaram. Fixou o olhar na coruja, que permanecia imóvel, impassível, como uma estátua viva, como se fosse um espelho absoluto de sua consciência.

Então, Rodrigo sussurrou.

Baixo. Quebrado.

— Eu me tornei aquilo que mais odiei... Eu me tornei o próprio Lucius. Talvez... pior do que ele.

A coruja não se moveu.

Mas seu silêncio pesava como mil vozes.

Rodrigo continuou ali, em silêncio, durante o que pareceram minutos ou talvez horas — o tempo já não era uma constante naquele lugar. Ele simplesmente a encarava, e ela o encarava de volta.

Seus olhos dourados pareciam ler cada fresta de sua alma.

E então, como se decidisse que era hora de prosseguir, a coruja abriu suas asas.

Não era um gesto comum.

Era um ato de revelação.

Na asa direita, havia uma árvore. Seus galhos erguiam-se ao céu invisível, com dez esferas brilhantes, irradiando uma luz dourada pulsante. A árvore crescia imponente, viva, poderosa. Cada esfera parecia conter mundos inteiros em miniatura — ou almas?

Na asa esquerda, vinham as raízes. Elas desciam, negras como carvão, entrelaçadas e firmes, como se agarrassem os pilares de algo além da realidade.

Nelas, também havia esferas. Dez ao todo. Mas essas não brilhavam. Eram escuras como o vazio. Ônix absoluto. Como olhos cegos que tudo viam.

Rodrigo não sabia o que estava vendo, mas sentia.

Sentia que aquilo era mais antigo do que a Terra.

Mais antigo que o próprio tempo.

E então, com uma única batida de asas — um sopro que não causou vento, mas moveu o próprio espaço — tudo mudou.

O cinza infinito ao redor dissolveu-se como fumaça.

Em seu lugar, formou-se um templo. Silencioso. Antigo. Como se existisse antes mesmo dos deuses.

No centro do templo, havia uma mesa redonda de pedra.

Três cadeiras de madeira, esculpidas à mão, dispostas ao redor dela.

O chão era feito de lajes negras riscadas com símbolos arcanos. As paredes pareciam respirar, pulsando com uma energia baixa, vibrante, quase imperceptível, mas viva.

Rodrigo piscou algumas vezes. Seus olhos ainda estavam tentando se acostumar com o novo cenário.

Mas em seu íntimo, ele sabia:

um julgamento estava para começar.

Na primeira cadeira, uma silhueta humana.

Sem rosto. Sem expressão.

A figura estava coberta por véus escuros que oscilavam, mesmo sem vento. Apenas sentada, imóvel, mas imponente.

Então, uma voz ecoou pelo templo.

Uma voz que Rodrigo não conseguia definir — não era masculina nem feminina. Não parecia humana, mas também não era bestial. Ela estava entre tudo e nada, entre a infância e a velhice, entre máquina e carne.

— Ela representa suas vítimas. — disse a voz, soando dentro da própria alma de Rodrigo, mais do que em seus ouvidos.

Ele olhou ao redor, tentando identificar a origem da voz — até que seus olhos pousaram novamente na coruja. Ela ainda o observava, como se dissesse: Continue.

"Minhas vítimas?" — pensou Rodrigo, o coração apertando no peito inexistente.

A voz respondeu como se lesse seu pensamento:

— Sim, suas vítimas. Foram tantos rostos… tantos nomes... tantas almas despedaçadas por suas mãos, que seria impossível representá-las com apenas um rosto. Por isso, esta cadeira é ocupada por uma entidade coletiva. Uma soma. Uma lembrança viva do que você fez.

Rodrigo engoliu seco. Sentia-se pequeno diante daquela entidade sem rosto. O peso de suas mortes ecoava ao seu redor, como sussurros e choros entre as colunas do templo.

Com hesitação, ele olhou então para a cadeira à sua direita.

E ali estava ele mesmo.

Ou melhor: uma versão distorcida, raivosa, deformada por dentro.

Os olhos — os mesmos olhos — o encaravam com desprezo.

Era como se aquela versão gritasse: "Você me matou. Você me destruiu. Você me transformou nesse monstro."

Rodrigo tentou dizer algo.

Tentou se explicar.

Mas antes que qualquer som saísse de seus lábios, seus olhos se voltaram para a cadeira do centro.

E então... o mundo desabou.

— Luciana? — ele sussurrou, a voz trêmula, como a de uma criança perdida.

Ela estava ali.

Sentada com as mãos sobre o colo, usando a mesma roupa simples de quando brincavam no quintal.

Seu olhar era calmo. Triste, mas calmo.

Como se já soubesse tudo que precisava saber.

Rodrigo cambaleou um passo à frente. Depois outro.

Seu primeiro impulso foi correr até ela. Abraçá-la. Implorar por perdão.

Mas... ele parou.

A dois passos da mesa, ele parou como se tivesse batido em um muro invisível.

Vergonha.

Medo.

Culpa.

Tudo o puxava de volta.

Ele não conseguia mais olhar nos olhos dela. Não depois de tudo que havia feito.

Seu corpo tremeu. Os lábios se abriram, mas nenhuma palavra saiu.

Somente o som da respiração pesada.

Somente o som do coração de um homem quebrado.

Luciana o observava.

Em silêncio.

E esse silêncio era mais doloroso que qualquer grito.

“"Eu pensei que, ao morrer, tudo cessaria.

A dor.

As lembranças.

Os nomes.

As promessas quebradas.

Mas ela está aqui.

Luciana.

Meu coração — ou o que sobrou dele — afunda.

Ela não mudou.

Os olhos ainda têm aquela luz.

Aquela pureza que eu nunca soube proteger.

Ela sorri…

Por quê?

Ela não deveria sorrir pra mim.

Eu... eu não mereço.

Eu não sou mais seu irmão.

Sou só uma sombra do que prometi ser.

Eu vou te proteger, Lu... Nada vai te machucar enquanto eu estiver por perto."

Lembra disso?

Mentira.

Tudo mentira.

Você morreu, Lu.

Você... e os nossos pais.

Morreram enquanto eu tremia.

Amaldiçoando o mundo — mas sem fazer nada.

E quando finalmente me levantei...

Foi tarde demais.

Então eu me tornei aquilo que eu mais odiava.

Me alimentei da dor.

Do ódio.

Da sede por justiça que virou sede por sangue.

Eu torturei homens.

Matei inocentes.

Ri enquanto eles suplicavam.

Pensei que, talvez, o mundo merecesse arder…

Como nós ardemos por dentro.

Mas agora…

Vendo você...

Eu percebo.

Eu só queria apagar o passado.

Só que, em vez disso...

Eu o manchei ainda mais.

Luciana...

Fica onde está.

Não chega perto.

Não me toca.

Se você soubesse o que eu fiz...

Se pudesse sentir o que eu me tornei...

Você entenderia que eu não sou digno nem de olhar pra você.

Minhas mãos — que um dia seguraram as suas quando você tinha medo do escuro —

Essas mãos agora só sabem esmagar.

Cortar.

Matar.

Não quero que elas te toquem.

Eu sou uma mancha, Lu.

Uma rachadura na promessa que eu fiz.

E mesmo que você me perdoasse...

Eu nunca me perdoaria.

Então... por favor...

Volta.

Volta pra luz.

De onde você veio.

De onde eu nunca devia ter tentado alcançar.

Me deixe aqui.

Com as minhas cicatrizes.

Com os gritos que eu causei.

Com a memória do que eu fui…

E do que eu devia ter sido.

Por você.”

Rodrigo estava ajoelhado no chão.

— Eu não mereço perdão…

Não havia céu. Não havia chão. Apenas um vazio opressor ao seu redor, onde tempo e espaço pareciam suspensos, como se o universo estivesse segurando a respiração.

Os ecos dos gritos que ele causou — as vozes dos que suplicaram por misericórdia — sussurravam em seu ouvido, mesmo depois da morte. Não havia redenção à vista. Não havia promessas de paz.

E ainda assim, ele sussurrou:

— Me desculpa…

Não era uma súplica por salvação.

Não era para escapar do que viria.

Era só… a verdade.

Pela primeira vez em muito tempo.

— Me desculpa, Luciana… — sua voz quebrou. — Não por mim. Eu sei o que sou. Mas por você. Por não ter estado lá. Por ter deixado você morrer… Por ter virado isso.

A garganta queimava, embora já não houvesse corpo que pudesse arder. As mãos tremiam. Mãos que um dia haviam segurado a dela, jurando protegê-la de monstros — mas que se tornaram os próprios monstros.

E então… ele sentiu.

Um cheiro sutil, uma presença.

Algo suave, quase inalcançável.

Ele ergueu o rosto — devagar, como quem teme o que vai ver.

Luciana estava ali.

Em pé. Diante dele.

Seu vestido branco tremeluzia como névoa ao vento. Os cabelos desciam pelos ombros com a mesma leveza de quando era criança. O rosto era sereno, os olhos claros. Inocentes. Intactos.

Ela não falava.

Não julgava.

Apenas se aproximou.

Rodrigo não conseguia sustentar o olhar.

Os olhos dela…

Tão puros.

Tão vivos.

Tão diferentes dos olhos apagados que ele segurou enquanto o sangue dela se esvaía.

Ele queria desviar. Queria fugir dali.

Mas como fugir de algo que já está dentro de você?

— Você devia me odiar… — murmurou. — Você devia me olhar como eu olho pra mim. Com nojo. Com desprezo.

Luciana não respondeu.

Ela apenas se agachou lentamente, até ficar de joelhos, na mesma altura dele.

Rodrigo tremia.

— Eu queria que você gritasse comigo. Que me batesse. Que cuspisse na minha cara.

— Por favor… faça isso.

— Não me perdoa… não me perdoa…

Ele chorava sem perceber. Lágrimas que pareciam não ter fim, brotando não dos olhos — mas da alma.

Luciana, então, estendeu a mão.

Com delicadeza, tocou seu rosto.

Foi um toque morno. Calmo. Como o de uma brisa que acaricia a pele antes de chover.

E Rodrigo… desmoronou.

Soltou um soluço que atravessou o silêncio como uma lâmina.

E, então, deixou-se cair. Deixou-se chorar. Como uma criança.

Ali, naquele não-lugar, naquele tribunal onde só existiam sombras e memórias…

Pela primeira vez em anos, Rodrigo chorou por si mesmo. Não de ódio, mas de dor. De arrependimento. De perda.

Chorou como quem finalmente entende que já não pode voltar.

Luciana não disse nada.

Ela apenas o segurou.

E mesmo que fosse tarde demais…

Mesmo que aquele momento fosse um resquício do que já havia morrido…

Pela primeira vez, Rodrigo sentiu algo que não sentia desde que era criança.

Calor.

Mas então, sem aviso algum, o corpo de Luciana começou a se desfazer diante de seus olhos.

Primeiro foram os contornos do vestido, dissolvendo-se como névoa ao vento. Depois, os fios de cabelo, que se soltaram como fios de luz em meio à escuridão. Por fim, os traços do rosto, os olhos, o sorriso… tudo se fragmentou em pequenas partículas douradas, dançando no ar como cinzas sagradas.

Rodrigo estendeu as mãos, desesperado, tentando agarrar o que restava dela. Mas seus dedos atravessavam o vazio, como se tentassem capturar um sonho que já havia terminado.

Ela se foi.

De novo.

Como antes.

Como sempre.

E o silêncio que se seguiu foi mais cruel do que qualquer grito.

Foi então que o som do bater de asas cortou a quietude — lento, grave, imponente.

A coruja.

Negra como a noite mais densa, com olhos dourados como os de um deus que tudo vê. Ela voou sobre ele, e onde suas asas passavam, sombras se erguiam do chão, densas como piche. Serpentes de escuridão envolveram os braços de Rodrigo, depois as pernas, o peito… até mesmo a alma.

Ele não resistiu.

Não podia mais resistir.

Não havia mais força, nem vontade. Apenas cansaço, culpa… e um vazio profundo demais para ser descrito.

Enquanto era arrastado para as trevas, uma voz — que poderia ser dele, ou de algo além da compreensão — sussurrou no silêncio absoluto:

“Nem todo reencontro é permitido.

Nem toda dor pode ser curada.”

E, então, antes do fim… antes do esquecimento completo…

Uma última frase escapou de seus lábios entreabertos, rouca como o lamento de um condenado:

— Se houver um novo começo… que eu não esqueça quem fui.

E o resto... foi silêncio.

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