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Chapter 2 - Capítulo 3 – A Fazenda, as Crianças e o Pai das Sombras

📚 Capítulo 3 – A Fazenda, as Crianças e o Pai das Sombras

Pov Zero

A fazenda não era bonita.

Era seca, cheia de pedras duras, cheiro de ferrugem e galinhas que bicavam tudo.

A gente vivia ali como se fosse normal. Como se tivesse sido sempre assim.

O céu era cinza. A terra era ocre.

E o mundo, pequeno.

Eu morava com sete crianças chatas e o Pai.

Eles gritavam, brigavam, riam alto demais.

Viviam suados e com os joelhos ralados.

Um deles lambia a parede às vezes.

Eu achava nojento.

Eles tentavam brincar comigo. Mas eu preferia ficar de longe.

Eles eram barulhentos.

Eu era outra coisa.

**

O Pai não era como os outros adultos — não que eu tivesse conhecido muitos.

Era sério, magro, andava como se sempre soubesse onde ia.

Tinha barba por fazer, olhos que analisavam tudo e um silêncio que pesava mais que a voz de qualquer um.

A gente o chamava de Pai porque não tinha nome melhor.

Mas pra mim… ele era só meu.

Mesmo que nunca dissesse isso.

**

Ele era exigente.

Acordava a gente com duas palmas secas.

— Levantem. O mundo não espera.

As crianças reclamavam.

Eu não.

**

A gente treinava todo dia no galpão.

Era um lugar gelado, de ferro, onde o som do próprio passo parecia errado.

Ali, ele ensinava a cair certo, correr sem som, mirar, respirar no tempo do inimigo.

Ele dizia:

— Só sobrevive quem se antecipa.

**

Tinha um jogo que ele criou só pra gente.

Ele chamava de "invisível".

— Quem conseguir não ser visto nem ouvido, vence.

Ele apagava as luzes. Trancava as portas.

Os outros riam no escuro. Um tropeçava, o outro caía.

Eu…

Eu só ficava quieta.

Na terceira vez que jogamos, ele passou tão perto de mim que senti o vento da jaqueta.

Meu coração batia alto demais, mas eu não mexi um músculo.

Quando acenderam as luzes, ele olhou nos olhos de cada criança.

Depois olhou pra mim.

— Boa, Zero.

Foi a primeira vez que ele me chamou assim.

Eu sorri por dentro.

Foi um nome. Um lugar. Um destino.

E eu gostei.

**

Comigo, ele era diferente.

Depois que todos saíam, ele me fazia repetir os exercícios de novo.

Só que mais rápido. Mais difícil.

Mandava eu correr de olhos vendados.

Treinar com um braço preso nas costas.

Ficar 5 minutos sem fazer barulho respirando.

— Se você cair, levanta.

— Se errar, tenta outra coisa.

— Se doer, guarde isso.

— Vai precisar quando quiser viver.

Eu fazia tudo.

Mesmo sem entender o porquê.

**

Às vezes, ele me deixava sentar ao lado dele, de noite.

Ele lia livros sem imagens, com palavras grandes.

Uma vez, ele parou e disse:

— Um dia você vai ler mais rápido que eu.

— Duvido. — eu disse.

Ele riu. Só com os olhos.

Foi a primeira vez que vi isso.

Foi mais raro que um abraço.

**

De vez em quando, ele me tirava da fazenda.

Só a mim. Nunca os outros.

Andávamos até um pedaço do mato onde o vento era lento.

Lá, ele me ensinava a ouvir o chão.

A sentir se algo mudava no ar.

A prever. A escutar o que ninguém dizia.

Eu não entendia tudo.

Mas guardava tudo.

**

Uma noite, sonhei com gritos.

Acordei com o corpo em alerta. Fui até o quarto dele.

A porta estava entreaberta.

Ele dormia de lado. A faca sob o travesseiro. Sempre.

Entrei sem fazer barulho e deitei no canto.

Quando acordei, havia uma manta sobre mim.

**

Uma vez, perguntei:

— Por que eu?

Ele demorou para responder.

— Porque eu vi você nascer.

— Isso faz de você meu pai?

— Não.

— Mas faz de mim alguém que nunca vai deixar o mundo te moldar sozinha.

Eu fiquei em silêncio.

Guardei aquilo.

Como tudo.

**

Os outros diziam que ele gostava mais de mim.

Talvez fosse verdade.

Mas ele me cobrava mais também.

E no mundo dele… ser cobrada era um sinal de que você importava.

**

Às vezes, eu queria brincar.

Só um pouco.

Mas se eu pegava uma pedra diferente, ele tirava da minha mão.

— Isso vai te atrasar.

— Mas é só uma pedra…

— O mundo não brinca, Zero.

Então eu não brincava.

**

E, no fundo, eu nem queria mais.

Ficar invisível era melhor.

Ser escolhida pra sair, melhor.

Ser vista por ele — de verdade — era o melhor de tudo.

**

A fazenda era feia.

As crianças, barulhentas.

O Pai, exigente.

Mas ali, aprendi a não ser vista.

E quando você aprende a desaparecer, aprende também a sobreviver.

E isso…

Era melhor do que qualquer brincadeira.

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