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Chapter 25 - OS PASSOS DE RUDOLF BARTELS

Sozinho em seu quarto do hotel, Alberto se pôs a relembrar cenas, a 

recompor situações. 

Como num "quebra-cabeça", os acontecimentos foram-se encaixando, se 

armando até formarem uma paisagem completa. 

Primeiro, Hugo. O quintal da pensão de Cora não dava para o de sua 

casa? Tendo quarto com saída independente, fácil seria a Mr. Graz 

aproveitar-se da escuridão, saltar o muro e realizar o seu intento. Quanto à 

espada espanhola, não lhe teria sido difícil escondê-la no fundo da mala ou 

atrás dos livros de sua biblioteca. O mesmo deveria ter-se dado com os 

besouros. Possivelmente levara anos, escolhendo, pelos nomes, os que 

poderia associar aos diferentes crimes. Talvez já os tivesse todos no 

saquinho de que Kurt von Richter lhe falara. 

Depois, Clarence O'Shea. Com certeza Graz tinha o tóxico guardado à 

espera da primeira oportunidade para matar o filho de Cora. A ocasião veio, 

quando este foi obrigado a tomar cápsulas, por causa da gripe. 

Em seguida, Maria Fernanda. É verdade que Bartels não poderia prever a 

vinda da cantora de cabelos vermelhos. Não teria ele, entretanto, conservado 

o "sagittarius" como reserva, para algum ruivo de "emergência"?... Alberto 

lembrou-se de que não lhe teria sido difícil fugir no meio da confusão que se 

formou com a morte espetacular da cantora. Além disso, Kurt lhe dissera, no 

meio da conversa, que, quando estudante, Rudolf havia sido campeão de 

esgrima na universidade. Isso explicava perfeitamente a suposta agilidade 

que c Inspetor sempre atribuíra ao "inseto", e que intrigava muito a ambos. 

Rachel Saturnino. Alberto não compreendia bem a razão pela qual a 

moça não havia recebido o "inseto". Provavelmente algum contratempo, um 

extravio, por exemplo. Quanto à máscara e às luvas vermelhas, Bartels 

deveria tê-las executado ele mesmo, tranqüilamente, em seu quarto. A 

costura era grosseira, malfeita, o que revelava falta de jeito e de prática. O 

"inseto" queria assustar Rachel, surgindo-lhe com características do próprio 

"Ignicornius". Quanto às impressões digitais, Graz era suficientemente 

esperto, e sabia como evitá-las. 

Depois, Padre Afonso. Alberto lembrou-se do livro que encontrara certa 

vez no quarto do... suíço: "Como fazer uma Boa Confissão". Bartels 

certamente fingira-se amigo do Padre para que pudesse freqüentá-lo, sem 

despertar suspeitas. O médico recordou-se também de ter ouvido o sacerdote 

dizer que Mr. Graz ajudara a construir a capela, não só dando-lhe algum 

dinheiro, como oferecendo-lhe uma planta da igrejinha, provavelmente 

insinuando que fosse feita de madeira, a fim de facilitar o seu plano. 

Na noite fatal, pretextara uma confissão a fim de entrar na capela e 

aproximar-se do Padre Afonso, de modo natural. Provavelmente, ao atirar a 

granada, tencionava fugir em tempo, salvando-se das chamas. O fogo, 

entretanto, alastrara-se de modo demasiadamente violento, e ele sucumbiu. 

Isso, ou então, o infeliz desejara pôr termo a seus dias de modo proposital, o 

que o bilhete recebido por Alberto, depois da morte de Padre Afonso, fazia 

supor. Sim, pois aquele aviso fora indubitavelmente posto no correio antes 

do crime. 

Alberto se pôs a analisar a situação de cada um dos suspeitos. A primeira 

coisa que sentiu foi uma profunda ternura por Verônica. Pobre meninazinha, 

sofrera tanto! Como reparar as injustiças que haviam feito contra ela? Era 

demasiado tarde, agora. Verônica já deveria estar casada. De qualquer modo, 

logo que voltasse ao Brasil, iria descobrir onde ela estava, custasse o que 

custasse. Repararia o erro, iria aos jornais, limpando definitivamente o nome 

dela. 

Teria Mr. Graz posto os insetos debaixo do colchão de Verônica, para 

comprometê-la? Talvez não. É bem provável que tivesse sido Elza, a 

copeira. com aquele fim, é claro. 

E Mr. Gedeon, por exemplo, lendo o volume sobre coleópteros, 

justamente aquele que reproduzia um "Bembidion ustulatum"? O americano, 

aliás, como toda a população da cidade, começara a se preocupar com 

escaravelhos, depois que os jornais divulgaram os crimes do "inseto". 

Possivelmente adquirira aquela coleção por curiosidade. Ao ver o Inspetor 

chegar à loja, previu que iria ficar numa situação embaraçosa se o policial o 

encontrasse lendo aquele livro. Apavorado, escondeu-o dentro da perna 

mecânica, sem prever que esse fato iria comprometê-lo mais ainda. Quanto 

ao cozinheiro, apesar de ser um sujeito realmente perigoso, nada tinha a ver 

com as loucuras do "inseto". 

Lembrando-se do "galo-da-serra", Alberto compreendeu logo o que 

havia sucedido: a plumagem viva e a cor de fogo do maravilhoso pássaro 

transtornaram Mr. Graz como se fossem uma bela cabeleira vermelha. 

E Alberto sentiu-se subitamente invadido por uma onda de ternura que 

envolvia tudo, criaturas e coisas, como se o mundo, com suas alegrias e 

dores, grandezas e misérias, formasse apenas um coração. Um grande e 

único coração... 

*** 

Dali a três dias o médico deveria seguir para a Itália, onde iria encontrar 

seus pais. A morte de Hugo abalara-os muito, e os dois passavam a maior 

parte do tempo viajando. 

VERÔNICA 

Alberto encontrou os pais em Roma e contou-lhes a conversa com von 

Richter. Os velhos ficaram estarrecidos diante da espantosa história de 

Rudolf Bartels. 

— Pobre Hugo! suspirou a mãe. Jamais seria capaz de supor que o 

simples fato de possuir sardas e cabelos vermelhos iria lhe custar a vida! Eu 

não poderia ter sossego enquanto não soubesse do "motivo" pelo qual meu 

filho havia sido assassinado! 

— Se eu fosse algumas dezenas de anos mais jovem, entraria na lista de 

Mr. Graz! exclamou o pai, lembrando-se de que seus cabelos, hoje brancos, 

haviam sido cor de fogo. 

Alberto, que fora à Itália por poucos dias acabou lá ficando dois meses, 

pois adorava aquele país. Em nenhum outro lugar do mundo encontrara tanta 

poesia e beleza aliadas a um tal calor humano. Mas, se Roma, Florença e 

Veneza o fascinavam com suas já tão decantadas maravilhas, as velhas 

pequenas cidades o enterneciam. 

E foi em Siena e Assis que ele teve algumas das mais puras emoções de 

sua vida. Que "atmosfera" tinha o lugar onde vivera Francisco, o grande 

santo, tão humano em sua ternura pelos seres e coisas, tão comovente em sua 

voluntária pobreza! E Alberto lembrou-se de Padre Afonso, que dedicava a 

Francisco de Assis a maior das admirações. 

Retornando a Roma, preparou-se para voltar só ao Brasil, pois os pais 

ainda iriam ficar algum tempo na Itália. 

— Você já está em idade de pensar em casamento, disse-lhe a mãe, à 

despedida. 

Alberto sentiu uma sensação desagradável ouvindo aquilo. Tivera uma 

porção de "casos", mas nenhum deles havia deixado marcas em sua 

sensibilidade. Ainda naqueles dias conhecera uma dançarina que o 

impressionara vivamente. Chamava-se Carla Mazzini e fascinara-o com sua 

beleza quente e espetacular que fazia lembrar a de Rachel Saturnino. Mas 

durara pouco o sortilégio em que a moça o envolvera, e o romance terminou 

logo. 

— As mulheres são como as cidades, pensou ele. Perdem o encanto 

depois de decifradas... 

Ele sabia, entretanto, que com uma delas haveria de ser diferente. Essa 

teria sempre um novo e misterioso "charme", para ele... Verônica! Sentia-se 

secreta e intimamente ligado a ela, como se a moça fosse um pouco de sua 

própria carne. Enganara-se a si próprio, correndo atrás de outros amores. O 

que ele buscava naquelas mulheres era apenas um pouco de... Verônica. Mas 

era tarde. A moça já estava irremediavelmente perdida. Outro homem estaria 

enlaçando — quem sabe se naquele mesmo instante — a sua cinturinha fina, 

outro iria ser o pai de seus filhos. Que estúpido fora, não a arrancando da 

casa de Cora O'Shea! 

— "Too late, my dear, too late..."(*) parecia-lhe estar ouvindo a 

irlandesa dizer, muito vermelha, as banhas comprimidas no complicado 

espartilho. A verdade, a dura verdade, pensava Alberto, é que Verônica 

nunca o amara realmente. Se assim não fosse, ela teria passado por cima de 

todos os mal-entendidos. 

(*) Muito tarde, meu caro, muito tarde... 

Alberto voltou para o Brasil, e foi diretamente a Vista Alegre. A primeira 

coisa que fez foi dar uma entrevista coletiva aos jornais, narrando com todos 

os pormenores a inconcebível história do Escaravelho do Diabo. A notícia 

causou sensação, como ele bem imaginara. Depois "acontecera" o banquete 

oferecido pelo Prefeito a ele, Alberto, e ao Inspetor Pimentel. 

Obcecado pela idéia de encontrar Verônica — mesmo já casada com 

outro — o médico fez várias tentativas para localizá-la. Ieda, sua maior 

amiga, achava-se em viagem pela Argentina. Ninguém sabia de nada. 

Alberto decidiu então procurar o irmão de Verônica na cidade do interior 

onde vivia. Aproveitando o primeiro fim-de-semana, tomou um avião e foi 

para lá. Uma grande decepção o esperava. O advogado havia falecido meses 

atrás. 

— Peritonite aguda, explicou o Promotor da Comarca. Não houve 

penicilina que desse jeito nele. Caiu para morrer. 

— Onde está a viúva? 

— Foi morar com os pais, e mudou-se para a fazenda. T— Sabe se vivia 

com o Juiz uma irmã dele chamada 

Verônica? Uma mocinha pequena que toca muito bem piano. 

— Ah! Sei quem é. Realmente ela morou com ele durante algum tempo, 

mas há já dois anos que foi para o Paraná. 

— Paraná? Casou-se? Com quem? 

— Não sei. Ouvi dizer que foi convidada para ser professora de música 

no Conservatório de Curitiba. 

Alberto agradeceu as informações e dirigiu-se imediatamente para a 

agência da "Varig". 

Não havia avião direto para Curitiba; Teria de voltar a Vista Alegre e de 

lá tomar o bimotor que fazia aquela linha. Ora, aconteceu que, ao voltar à 

casa, o médico encontrou um recado: o Diretor da Faculdade de Medicina 

precisava falar urgentemente com ele. Tratava-se do seguinte: dentro de três 

dias, chegaria a Vista Alegre um dos maiores cardiologistas do mundo, e 

Alberto fora escolhido para saudá-lo em nome dos colegas. Além disso, teria 

de acompanhar o hóspede durante todo o tempo da visita. Isso significava 

um atraso de, pelo menos, sete dias que Alberto, em sua aflição, sentia como 

se fossem sete séculos! Sabe-se lá o que poderia acontecer à moça durante 

esse tempo! Talvez se casasse com outro — se é que já não o fizera antes —

 ... 

talvez fosse para a Europa... Que angústia, meu Deus... E se lhe 

escrevesse, endereçando para o Conservatório? Não. Melhor seria esperar 

um pouco, e ir pessoalmente "sondar o terreno" antes. Ridículo papel haveria 

de ser o seu, se endereçasse carta apaixonada à mulher de um outro!... Os 

dias passaram, e Alberto finalmente ficou livre para fazer a tão desejada 

viagem. 

* * * 

O médico chegou a Curitiba à tardinha. Depois de se instalar no hotel, 

saiu para dar uma volta e ver a cidade. Mal andara alguns quarteirões, 

deparou com um grande cartaz, onde se lia, em letras azuis e vermelhas: 

"SOCIEDADE DE CULTURA ARTÍSTICA" — Concerto de piano. 

Verônica. 

Hoje às 21 horas. 

— Ridículo! exclamou ele quase alto, sentindo que seu coração 

disparava como o de um adolescente apaixonado. 

Não lhe foi difícil arranjar um convite e, às vinte horas e pouco entrava 

Alberto no salão da SOCIEDADE DE CULTURA ARTÍSTICA. Chegara 

bem cedo, antes de todos, para garantir-se um lugar na primeira fila. Às nove 

da noite não havia mais uma cadeira vaga. Alguns minutos depois, entrou 

Verônica no palco cheio de flores. 

Alberto ficou inteiramente perturbado diante daquela figura graciosa de 

mulher, envolvida por uma túnica indiana azul-claro. Como estava adorável, 

mais feminina e mais mulher, assim um pouco mais gorda, os cabelos longos 

puxados para trás e amarrados bem no alto da cabeça! Verônica estava mais 

viçosa do que nunca! 

— Casou-se com certeza, pensou ele, lembrando-se do efeito 

embelezador que o casamento tem sobre as mulheres. 

E Alberto procurava fixar bem a vista a fim de ver se descobria a aliança 

na mão esquerda da moça. Difícil isso, pois os dedos da pianista deslizavam 

rápidos pelo teclado. 

O programa anunciava a Sonata K 545, de Mozart, as Variações de 

Beethoven, as Bachianas Brasileiras, de Villa-Lobos, e algumas peças 

avulsas de Debussy e Monpou. 

Ora, aconteceu que, em pleno "Andante" da Sonata Mozart, os olhos de 

Verônica se desviaram, não se sabe come encontraram os de Alberto na 

primeira fila da platéia. A moça atrapalhou-se, errou, e interrompeu a 

música, colocando a mão na testa, como se estivesse sentindo qualquer 

coisa. Algumas pessoas se levantaram, na platéia, em "suspense". 

— Não foi nada, disse a artista, recomeçando a tocar Tocou tão bem que 

os assistentes a saudaram com repetidos "bravos". 

No intervalo Alberto subiu aos bastidores para cumprimentá-la. 

— Você, aqui? exclamou ela, perturbada. 

— Casou-se? perguntou ele, disfarçando a ansiedade. A jovem ficou em 

silêncio e abanou a cabeça em sinal negativo. 

— Quer cear comigo depois do concerto? perguntou Temos muito que 

conversar. 

A moça aceitou o convite com o mais adorável dos s risos e voltou para 

o palco, a fim de continuar o programa. 

* * * 

Cerca de um ano mais tarde Alberto andava, agitado, um lado para outro 

no interminável corredor do maior hospital de Vista Alegre. O silêncio 

daquela hora — duas da madrugada — era apenas perturbado por abafados e 

periódicos gemidos de mulher, que partiam da sala de partos. 

Algum tempo depois a porta abriu-se e surgiu a enfermeira ainda de 

máscara ao rosto, segurando qualquer coisa enrolada em panos brancos, de 

onde provinha um choro fanhoso e débil. 

— Venha ver o seu filho, disse ela, colocando o recém-nascido entre os 

compridos e desajeitados braços do rapaz. 

Alberto, emocionado, olhou, para a criança e viu que uma leve penugem 

cor de fogo lhe cobria a pequena cabeça. 

— vai se chamar Hugo, disse ele, devolvendo à enfermeira o filho de 

Verônica.

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